Seminário internacional «Conflitos do modelo de desenvolvimento do capital» foi realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes e contou com debate entre Virgínia Fontes e Horácio Machado.
Por Júlio Delmanto, Fundação Rosa Luxemburgo
Organizado em parceria entre a Fundação Rosa Luxemburgo e a Escola Nacional Florestan Fernandes, o seminário internacional “Conflitos do modelo de desenvolvimento do capital” teve sua abertura no dia 4 de novembro em Guararema, com um debate com a participação da historiadora carioca Virgínia Fontes e do pesquisador argentino Horácio Machado.
Com participantes de doze países, o seminário tem como proposta analisar a conjuntura geopolítica latino-americana nos dias atuais, marcados por avanços do capital transnacional sobre direitos e territórios. Antes das intervenções dos professores convidados para abrir o evento, foram realizadas intervenções que lembraram as lutas de resistência dos trabalhadores e os vinte cinco anos da morte de Chico Mendes, apresentado como exemplo de luta que conecta a defesa do meio ambiente e da auto-organização popular.
Intitulada “O cenário geopolítico da América latina: conflitos do modelo de desenvolvimento do capital”, a primeira mesa de debates iniciou com exposição de Virgínia Fontes, autora de O Brasil e o capital imperialismo, entre outros importantes livros. Após agradecer o convite e dizer-se feliz por ver o crescimento das árvores plantadas em sua última visita, a professora lembrou que o momento atual do capitalismo é avanço da lógica mercantil sobre “todos os espaços da existência” e avaliou a conjuntura do Brasil como “muito difícil” para os movimentos sociais, sobretudo por conta da violência policial crescente.
Fontes destacou a inversão que se pode observar no Brasil a partir do início do século XX, com mudança no perfil da população, que deixou de ser majoritariamente agrária para estar concentrada em grande parte nas cidades e explicou que os processos de crise do capital não podem ser confundidos com uma ameaça a existência do capitalismo: “Enquanto dura a crise é que a produção de seres sociais capazes de serem explorados mais avança. Quando dizemos que o capitalismo contemporâneo é cruel com a natureza é verdade, mas para sê-lo ele precisa primeiro ser cruel com os seres humanos, precisa formar trabalhadores que somente possam viver comprando coisas em mercados, e isso chamamos de trabalhadores livres. Livres porque não tem onde mais se segurar, como garantir sua própria existência”, prosseguiu.
“A luta é cada vez mais internacional, os capitais se movem de um país a outro cada vez mais rápido. Crise não significa fim do capitalismo e também seria excessivo dizer que não há nada de civilizador no capitalismo, já que há algo que se chama desenvolvimento das forças produtivas, que é muito caro para nós que estamos na luta. Mas o que significa isso desde nosso ponto de vista? Socialização dos processos de produção no mundo” apontou Fontes.
Segundo a historiadora, um dos efeitos primários da lógica do capitalismo é nublar o modo social de produção que está por trás das coisas. “Para nós o mais importante é não aceitar isso, não há coisas sem trabalhos. Estamos cada vez mais socializados de maneira internacional e não nos damos conta, já que em princípios estamos em concorrência uns com outros pelos últimos empregos com direitos”. “O que nos apresentam como desenvolvimento é a mercadoria sem as pessoas”, resumiu.
“São duas coisas distintas: a socialização dos processos de produção é a condição humana de enfrentar o capital, o mundo da mercadoria sem pessoas é a potência do capital para subordinar os seres humanos. O que acontece hoje é que desenvolvimento não é apresentado como socialização, nunca, a mídia e as forças dominantes o mostram como expansão de indústrias, como mais produtos, fábricas e shopping centers. Essa é a maneira de nos liquidar, não de avançar” concluiu, ressaltando que a compreensão do quadro onde se dão os processos de luta e resistência é fundamental para que estes avancem.
O extrativismo faz parte do DNA do capital
Professor da Universidade Nacional de Catamarca, no norte da Argentina, Horácio Machado deu sua contribuição ao debate logo em seguida, trazendo uma série de pontos instigantes para a discussão. “Há duas grandes falácias fundamentais constitutivas da invenção da América: uma a que a cultura dos povos submetidos era inferior à dos povos conquistadores. A outra a de que tínhamos uma natureza tão exuberante que convidava os exploradores, por infinita. A América nasce como o local de exploração infinita, o extrativismo é isso, uma fundamental divisão geográfica que delimita uma zona de sacrifício para sustentar outras zonas de valorização e concentração”, iniciou.
Machado caracterizou o Tratado de Tordesilhas como a primeira linha político-jurídica que configura o extrativismo, com os ditos donos do mundo o repartindo e traçando uma divisão entre civilização e barbárie. “De um lado fica a lei, a verdade, a ciência, o conhecimento, a civilização, e de outro o espaço onde tudo está permitido, um território sem lei, sem verdade, sem conhecimento, onde está habilitada toda forma de violência”.
“O extrativismo é essa relação prática colonial, é econômica, política, jurídica e militar, e através dela se relacionam as zonas de saque e de consumo. Extrativismo é capitalismo, é a organização colonial do mundo, ele faz parte do sociometabolismo do capital”, explicou o argentino, para quem a dita acumulação originária não é uma etapa que aconteceu e está no passado, mas seria sim parte de um componente necessário para a ampliação e expansão do capital.
Para Machado, “o extrativismo faz parte do DNA do capital”, sendo o sociometabolismo do capital “uma forma muito perversa na qual a bioeconomia se transforma em necroeconomia”. Citando Marx, definiu a natureza como corpo inorgânico do homem e das mulheres, que seriam não mais do que parte da natureza. “Somos terra, nosso corpo é o ar que respiramos, é a água que tomamos. A terra é a mãe da qual sai um fluxo material energético, e há um cordão que une esses corpos propiciando que exista vida. Temos vida porque recebemos a gratuidade destes fluxos energéticos. E como corpos nos convertemos em comunidade, população que trabalha”, explicou.
Para o professor, a Ideia de necroeconomia é inspirada em Rosa Luxemburgo, que chegou a falar em economias naturais. “Hoje se fala em bioeconomia, os fluxos energéticos que asseguram a vida são invertidos pelo capitalismo, que em vez de produzir bens e valores para a reprodução da vida o sistema cria uma necroeconomia criada para criar valores abstratos”.
Machado situa o extrativismo contemporâneo como fruto da crise capitalista dos anos 1970, já que se o keynesianismo havia sido uma solução para o período pós-guerra neste momento ele se mostrou insuficiente para lidar com o esgotamento dos bens naturais. “Com o tempo, passamos do consenso de Washington ao que eu chamo de Consenso de Pequim, que marca a reestruturação da geopolítica do mundo. Há uma ideia errada que confunde neoliberalismo como diminuição do estado e também outra que centra-se só na política dos 1990, para mim o neoliberalismo não tem que ver com políticas de ajustes mas sim é um fenomenal avanço do capitalismo sobre a soberania política dos povos, é apropriação das condições materiais e simbólicas da soberania popular. Foi a resposta do poder global à crise da ecologia dos 1970”
O que ficou em crise nos anos 1970, segundo Horácio Machado, foi o controle e o usufruto dos bens naturais, com o neoliberalismo significando a reapropriação da natureza como condição necessária para o processo de acumulação. “O extrativismo vem a ser a face superior do neoliberalismo. Hoje temos mais Estado e menos mercado nos governos progressistas, é certo, há políticas redistributivas, há crescimento, mas quem disse que a expropriação é incompatível com crescimento?”, questionou, prosseguindo: “A expropriação é muito mais compatível com fases de crescimento, a meu ver, isso é o que estamos vivendo. Estados associados ao capital transnacional para reconfigurar as zonas coloniais da extração, nossa América é uma grande colônia”.
Ele dividiu as colônias em duas categorias, as maquiadoras e as colônias de commodities. Na primeira explora-se a natureza interior, os corpos dos trabalhadores, e a outra é a superexploração dos territórios como provedores de matéria prima. “Não há exploração da mãe terra que não seja também exploração dos trabalhadores, de seus corpos”, destacou Machado, que criticou a “retórica progressista” que diz ser necessário desenvolver para fechar os buracos de desigualdade. “Isso é capitalismo, é não entender que não há agressão da natureza que não seja agressão dos seres humanos e isso implica dominação e exploração de classe. É o que chamamos de expropriação ecobiopolítica, expropriação integrada de todos os aspectos de vida. Através do extrativismo os dispositivos de dependência se territorializam”, concluiu.
Após essa mesa de debates, o evento prosseguiu com discussões sobre
«Movimentos Sociais na América Latina pela defesa dos Bens da Natureza, construções de alternativas ao modelo de desenvolvimento capitalista, e agenda de ações» e
«Atualidade da luta pela terra na América latina e desafios da construção da Reforma Agrária Popular», além de grupos temáticos sobre mineração, petróleo e agronegócio.
Ao final do evento foi realizada uma homenagem à ex-diretora da Fundação Rosa Luxemburgo, Kathrin Buhl, falecida em 2012. Na presença dos participantes do seminário, foi plantada uma árvore na Escola Nacional Florestan Fernandes a fim de que seus ideias de transformação e justiça social sigam florescendo e dando frutos.
* fotos de Verena Glass