O Bem Viver – um novo horizonte

Por Ana Rüsche
.“O Bem Viver” de Alberto Acosta inspira-se na resistência dos povos originários para propor alternativas anticapitalistas à ideologia do desenvolvimento
 

Lançamentos nas cidades de São Paulo (26/1), Rio de Janeiro (27/01) e Mariana (28/01) com a presença do autor

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Com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, a Editora Autonomia Literária e a Editora Elefante lançam O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos, escrito pelo político e economista equatoriano Alberto Acosta.
Na obra, Acosta trata de conceituar o que seja o Buen Vivir, filosofia nascida dos conhecimentos e práticas originárias sul-americanas, um processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com o meio ambiente.
O termo remete a idiomas originários: sumak kawsay (em quéchua), suma qamaña (em aimará), além de aparecer também como nhandereko e teko porã, em guarani. O autor ainda acrescenta que “existem noções similares ainda entre os mapuche no Chile, os kunas no Panamá, os shuar e os achuar da Amazônia equatoriana, assim como nas tradições maias da Guatemala e de Chiapas no México”. Os vocábulos, entretanto, não são facilmente traduzíveis e nem suas traduções isentas de controvérsias.
 
Mudança civilizatória
A relação com a Natureza é essencial na construção do Bem Viver. Uma das ideias centrais no livro é superar o divórcio entre a Natureza e o ser humano. Diante de um modo de vida predatório e consumista, que se mostra incompatível com a vida no planeta, Acosta propõe o que seja o maior desafio do século XXI: uma mudança civilizatória.
A partir de uma perspectiva ética que entenda o meio ambiente como um valor intrínseco e ontológico, reconstrói utopias e propõe uma mirada política que já esteve também presente nas lutas de esquerda, embora muitas vezes colocada de forma marginal. Trata-se de escutar ainda as “diversas vozes que poderiam estar de alguma maneira em sintonia com essa visão, como os ecologistas, as feministas, os cooperativistas, os marxistas e os humanistas”.
O Bem Viver questiona o colonialismo. Principalmente, quando oferece um fundamento manco à ideologia desenvolvimentista. O autor coloca que, durante a Guerra Fria, quando os muitos peões do xadrez foram relegados ao “Terceiro Mundo”, as dicotomias de poder foram traçadas sem um horizonte imaginativo que as destrua. Dicotomias reforçadas e aceitas como verdadeiras: desenvolvido-subdesenvolvido, pobre-rico, avançado-atrasado,civilizado-selvagem, centro-periferia. Acosta aponta, inclusive, como parte da esquerda tampouco procura superar o discurso. A raiz colonialista desta visão de mundo é intolerável, colocando na categoria de “subdesenvolvidos” muitos saberes vitais à superação do modo de produção atual. Para a proposição de um discurso contra-hegemônico, Acosta frisa que depende da capacidade de pensar, propor, elaborar e, inclusive, indignar-se, sem perder em vista a dimensão global do desafio.

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A economia pensada a partir do local e do comunitário
Para a economia, o autor aponta dois objetivos claros: a solidariedade e a sustentabilidade. Uma proposta econômica com base na autodependência comunitária. Não bastaria somente decrescer se isso não for “acompanhado por outras transformações”. Mais além de recuperar o tempo aos trabalhadores e à exploração da força de trabalho, o Bem Viver defende a vida e sua fruição na sua plenitude.
O autor trabalha com a ideia de transição para o autocentramento, priorizando os mercados locais – mercados comunitários, onde predominará o “viver com o nosso e para os nossos”, vinculando campo e cidade, rural e urbano – e o envolvimento ativo da população.
Salienta alguns pontos específicos. Entre outros, reduzir a dependência do petróleo e da mineração, assim como dos monocultivos. Identificar demandas das pessoas e possibilidades de satisfazê-las mais próximo à cultura e ao meio ambiente. Impulsionar a redistribuição da renda e da riqueza, “incluindo a expropriação daquela que tem sido acumulada devido à corrupção ou à apropriação indevida de propriedades alheias, sobretudo das comunidades”.
Longe de ter um entendimento raso do que seja tecnologia, Acosta aponta a centralidade dos conhecimentos locais latino-americanos de cultivo e produção que, “por decisão, tradição ou marginalização, se mantiveram fora do padrão tecnológico ocidental e utilizam e inventam opções para facilitar trabalho produtivo e o consumo de produtos locais, artesanais e orgânicos”. Tampouco despreza as contribuições que possam advir de descobertas das consideradas “tecnologias limpas” de outros países e culturas.
Segundo o historiador Célio Turino, esta crítica ao produtivismo e ao consumismo é a riqueza do livro: “por isso ele é tão atual e tão necessário aos brasileiros, pois, de certa forma, todo este pântano ético, econômico, social, político e cultural em que nosso país está se atolando é reflexo de más escolhas que tão somente repetem modelos já fracassados, como o neodesenvolvimentismo, o neoextrativismo, a financeirização e a reprimarização da economia, bem como o equívoco em reduzir a ideia de inclusão social ao acesso a bens de consumo individual”.
 
Direitos da Natureza
biodiversidade
Outro ponto que merece destaque na obra é a conceituação do sejam os Direitos da Natureza. São direitos que defendem a manutenção dos sistemas de vida. O bem jurídico defendido seriam os ecossistemas e as coletividades. Dessa forma, os Direitos da Natureza garantem que a Natureza não seja mercantilizada. Garantem a soberania alimentar para todas as pessoas. Garantem a proteção do solo e o uso adequado da água.
Após conceitualizar o que sejam tais proteções, Alberto Acosta comenta a inclusão dos Direitos da Natureza nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009). Embora sejam uma inegável conquista, no Equador, leis posteriores “patrocinadas pelo Executivo contradizem seus princípios no campo dos direitos ambientais”. Sobre o caso boliviano, comenta que, para que sejam válidos e completos, os Direitos da Natureza devem oferecer uma postura biocêntrica. Em suas palavras, “[a constituição boliviana] outorgou um posto importante à Pacha Mama ou Mãe Terra, mas, ao defender a industrialização dos recursos naturais, ficou presa às ideias clássicas na apropriação da Natureza”.
A partir destes casos práticos na Bolívia e no Equador, Acosta sublinha ainda os desafios muito mais complexos que esta discussão jurídica e política teria na escala global. Caso a discussão avance, os Direitos da Natureza efetivamente afetariam privilégios e lucro de empresas transnacionais.
Um exemplo desta projeção se encontra no posfácio do livro, quando Gerhard Dilger comenta “o crime ecossocial no Vale do Rio Doce em novembro de 2015, perpetrado pela ação de transnacionais mineiras com a cumplicidade e omissão de instâncias estatais nacionais e regionais, numa aliança típica para os nossos tempos, virou a advertência mais dramática de que muito está podre no sistema capitalista predador que determina as nossas vidas”.
 
Estado plurinacional e democracia
O último grande tópico da obra é a construção teórica a respeito do estado plurinacional. Na formulação de Acosta, “a plurinacionalidade não nega a nação, mas propõe outra concepção de nação. Reconhece que não existe apenas uma nação ou apenas uma nacionalidade. Assume uma nação de nacionalidades diversas que têm convivido em estado de permanente enfrentamento”.
Uma proposta para que o Estado seja formado por identidades culturais que convivem com as contradições e injustiças de um passado histórico, sem perder de vista a necessidade de superar a marginalização exploradora das pessoas por gênero, raça, nacionalidade.
Boaventura de Sousa Santos aponta o Estado plurinacional como o solo fértil às práticas do Bem Viver – “o Bem Viver seria uma semente que só germinará em um novo tipo de Estado, o Estado plurinacional, que é construído com a participação dos cidadãos, dos povos e das nacionalidades, por meio de diferentes formas de democracia”.
Apesar do vislumbre de um paraíso harmônico, Acosta frisa que o processo de conquista não exclui lutas sociais. Ao contrário, são lutas múltiplas e diversas. Tantas quanto as formas de exploração perpetradas pelo capitalismo.
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O livro e seu objetivo didático
O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos possui, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, um objetivo didático: explicar as principais características do Bem Viver, conceito que nasce da visão de mundo dos povos indígenas, mas vai muito além.
Trata-se de um livro para se pensar o alvorecer do século XXI, quando os limites ecológicos do desenvolvimento capitalista desafiam todas as agendas políticas. O Bem Viver será para todos e todas. Ou não será.
O livro já foi publicado espanhol no Equador (Abya-Yala, 2012) e na Espanha (Icaria, 2013), assim como em francês (Utopia, 2014) e alemão (Oekom Verlag, 2015). A edição brasileira, com 264 páginas, foi ampliada e atualizada pelo autor, ganhando análises e novas reflexões.
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capa-bemviver-loja-600x600Ficha técnica
Título: O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos
Autor: Alberto Acosta
Tradução: Tadeu Breda
Editoras: Autonomia Literária e Editora Elefante
São Paulo, 2015, 264 páginas
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Sobre Alberto Acosta
albertocostaNascido em Quito em 1948, Alberto Acosta é um dos fundadores da Alianza País, partido que chegou à Presidência do Equador com Rafael Correa em 2007. Foi ministro de Energia e Minas e presidente da Assembleia Constituinte que incluiu pela primeira vez em um texto constitucional os conceitos de plurinacionalidade, Direitos da Natureza e Buen Vivir.
Durante o trabalho constituinte, porém, Acosta rompeu com o presidente equatoriano devido a profundas diferenças de opinião. Em 2013, lançou-se à Presidência da República por uma coalizão de movimentos políticos, sociais e indígenas denominada Unidad Plurinacional de las Izquierdas. Mas obteve escasso apoio popular, acabando em sexto lugar nas eleições.
 
 
 
 
 
 

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