"O neoliberalismo é uma doença que se contagia por muitas vias"

Cristina Fernández de Kirchner falou do valor estratégico da aproximação entre forças populares brasileiras e argentinas para repensar o significado do avanço do neoliberalismo

Por Dario Pignotti, Carta Maior
cfk1Militantes ocuparam a entrada da Casa de Portugal, no tradicional bairro da Liberdade, para receber as ex-presidentes Cristina Kirchner e Dilma Rousseff, as principais oradoras do encontro “A Luta política na América Latina hoje”. O “hoje”, ao qual o nome do evento se refere, remete provavelmente ao consenso que existe entre as forças democráticas e populares da Argentina e do Brasil de que se deve dar respostas imediatas à onda conservadora – que, no caso brasileiro, avança rumo a um modelo autoritário e repressivo. Antes de participar do ato junto com Dilma, Cristina foi recebida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na sede do seu instituto, no centro da capital paulista.
“Me reuni com Lula e com Dilma, e os vi muito bem, muito fortes” para resistir aos embates propostos por seus inimigos, respondeu Cristina Kirchner quando Carta Maior perguntou sobre os encontros que manteve nesta sexta-feira (9/12). Não foi fácil escutar o que diz a ex-presidenta argentina, já que ao seu redor havia muitos jovens militantes, especialmente mulheres, tentando tirar uma selfie.
Ela acabava de concluir sua exposição durante o evento, que foi organizado pela Fundação Perseu Abramo e que teve como anfitriã a “sempre presidenta Dilma”, segundo a secretária de Relações Internacionais do PT, Mônica Valente. A líder argentina, que finalizou seu mandato em 2015 com níveis de aprovação altos, lembrou do valor estratégico da aproximação entre as forças populares brasileiras e argentinas. “É cada vez mais importante desenvolver nossa capacidade de articulação, é necessário que nos unamos, para repensar o que significa este avanço do neoliberalismo, e ver como construímos uma nova maioria com todos os setores afetados, que serão cada vez mais”.
Cristina fez um paralelo entre a atual conjuntura do Brasil e da Argentina: “nós, na Argentina, deixamos de ser um país voltado à inclusão e ao consumo, para ser o da paralisia, da exclusão, que começa a deixar as pessoas de fora (das políticas públicas), a ver os comércios fechando (…) além do mais, também devemos saber que quando o Brasil vai mal, pela articulação que tem com o nosso aparato produtivo, nós também somos afetados”.
Consultada sobre o cenário brasileiro sete meses depois da chegada de Michel Temer ao poder, ela afirmou que “é necessário reconstruir a relação de forças capaz de enfrentar politicamente o governo (de Temer), que eu diria que é ilegal, porque não se respeitou a constituição, e também ilegítimo, pois não possui nenhum grau de representação política. Creio que o sistema de representação política é o que está em crise, e que esta se agravou com a destituição de sua presidenta legítima”.
Dilma e Cristina foram as encarregadas de abrir o seminário, no qual participam vários dirigentes políticos, cientistas e delegados de países da região, como o deputado do Mercosul Oscar Laborde, representante da Argentina.
Veja na íntegra a fala das duas presidentas:
DILMA ROUSSEFF

CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNER

Na exposição de Cristina se mostraram os dados de sua gestão em comparação com os números do governo de Mauricio Macri, e apresentadas desde uma perspectiva regional.
“Hoje faz exatamente um ano do fim do nosso governo. Naquele 9 de dezembro, a Argentina registrava um índice de desemprego de 5,9 %, o mais baixo das últimas décadas, e desde então já subiu a quase dois dígitos (…) o neoliberalismo precisa do desemprego de dois dígitos para que as pessoas briguem (pelos empregos disponíveis)”.
No auditório da Casa de Portugal, que estava lotado, com muita gente do lado de fora querendo entrar, a maioria era de jovens e mulheres. Um grupo de estudantes da USP recebeu Cristina com o coro “somos da gloriosa juventude peronista”, como uma forma de homenagear a militância juvenil da líder argentina, segundo explicou o estudante de sociologia Alexandre Pupo.
A ex-mandatária argentina também expôs, durante sua apresentação, uma radiografia do primeiro ano de governo de Mauricio Macri, vencedor do segundo turno nas presidenciais de 2015. Até o momento, a gestão do direitista tem se caracterizado pela traição às suas promessas de campanha: garantiu que não desvalorizaria o peso, e o dólar não para de aumentar, prometeu manter o preço dos serviços públicos no mesmo nível, e sua primeira medida ao assumir foi aplicar um aumento, entre outros exemplos citados por Cristina. Também disse que é “graças à blindagem midiática” que Macri conseguiu convencer o eleitorado de que era possível aplicar um modelo neoliberal sem consequências sociais. “O neoliberalismo é uma doença que se contagia por muitas vias, uma delas é a cultural, outra é a midiática”.
Ao retomar a perspectiva regional Cristina, mencionou o paradoxo sul-americano onde se retoma a lógica dos ajustes ortodoxos, precisamente quando os países ricos começam a revisá-los devido às consequências que acarretam.
Dilma Rousseff fez um gesto de aprovação quando Cristina se centrou nos malefícios do ajuste e do desemprego impulsados por Macri e por outros governos conservadores que se estabeleceram na América Latina. Durante sua conferência, Dilma fez um repasso dos quatro governos do PT, o último deles inconcluso, com profusão de dados, como já fazia quando estava no Palácio do Planalto. Logo, avançou em sua análise política, e foi então que recebeu o aplauso e algumas ovações do púbico.
Ela alertou sobre a deterioração acelerada da administração Temer e o risco de que derive num formato cada vez mais repressivo. “Modelos como o nazismo já não são admissíveis depois da queda do Muro de Berlim, (porém) toda a América Latina vive agora uma tentativa de retorno do neoliberalismo e o surgimento de medidas de exceção, não há dúvidas de que corremos riscos (…) o risco é o de um golpe dentro do golpe”, que afaste Temer para dar lugar a um governante ainda mais implacável. “Como ocorreu durante a ditadura: o golpe número um foi em 1964 e o golpe número dois foi em 1968, e o segundo golpe costuma ser mais duro. Diante desta crise, não podemos aceitar uma solução indireta, a única saída aceitável é o voto democrático, as eleições diretas”. O público ovacionou a ex-presidenta quando ela concluiu sua participação, com muitas pessoas gritando “diretas já”, enquanto ela era cumprimentada por Cristina.
Lula em Heliópolis
Antes do evento na Casa de Portugal, Cristina Kirchner se encontrou com Lula, com quem conversou depois que o ex-presidente e ex-líder sindical terminou sua visita à comunidade de Heliópolis, uma das favelas mais conhecidas de São Paulo – onde ele falou sobre o ódio à divergência política alimentado pelo governo pós-democrático, após o afastamento de Dilma do cargo, no 31 de agosto, data da conclusão do processo de impeachment. “Na minha opinião, o ódio contra o PT, contra mim, contra a Dilma não tem outra razão senão (atacar) o que foi feito neste país nestes 13 anos. Lembram quando criamos o Bolsa Família, e eles a chamavam de Bolsa Esmola?”, contou Lula em Heliópolis. Ele também disse que a saída para os problemas do Brasil é voltar a incluir os mais pobres no orçamento, e investir no crescimento. “Esse povo ainda vai voltar a sentir orgulho de ser brasileiro”, garantiu o ex-presidente.
Sete meses de Temer
Na próxima segunda-feira (12/12), Michel Temer completará sete meses na condição de “intruso” (assim o chamou Dilma) instalado no escritório do terceiro andar do Palácio do Planalto. Agora residindo no Palácio da Alvorada (desde setembro, se mudou somente depois da conclusão do processo de impeachment), o magnífico edifício modernista desenhado por Oscar Niemeyer, quando concebeu Brasília como uma cidade de grandes espaços públicos e republicanos.
Utopia incompleta, já que desde a sua fundação, em 1960, a cidade conviveu por 26 anos com presidentes que chegaram ao poder sem voto, entre militares e civis que herdaram o poder de forma indireta. Nesse prédio de colunas estilizadas como pescoços de garças, Dilma e Cristina se reuniram no dia 17 julho de 2015, após uma cúpula do Mercosul, evento no qual, pela primeira vez, se comparou os processos destituintes latino-americanos – iniciados com os casos de Honduras, em 2009, e do Paraguai, em 2012, além das tentativas que fracassaram na Bolívia e no Equador – com a Operação Condor que assassinou opositores durante as ditaduras da América do Sul de forma coordenada, entre os anos 70 e 80.
Precisamente nesta semana se cumpre 40 anos da morte do presidente brasileiro João Goulart, durante seu exílio na Argentina, fato que ainda não está totalmente esclarecido, embora exista sim a certeza de que ele foi um dos alvos da Operação Condor. Naquela calorosa sexta-feira de julho, data do seu último encontro, as então presidentas conversaram por mais de duas horas, depois das quais não realizaram a esperada coletiva de imprensa – um sinal da preocupação instalada no Planalto pela avançada destituinte, que avançou um pouco mais naquele mesmo dia, com o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) anunciando sua ruptura com o governo e abrindo o caminho para o plano golpista, em sociedade com Michel Temer.
É provável que aquela crise tenha sido um dos temas da conversa entre Dilma e Cristina. Porém, certamente não imaginavam a vertigem com a qual se desencadeariam os fatos, nem o prematuro desgaste de Cunha e Temer, os dois protagonistas daquela traição.
Tradução: Victor Farinelli; Foto: Gerhard Dilger 

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