A construção do Bem Viver e a defesa dos bens comuns nas cidade

Organizado pelo programa da FASE no Rio de Janeiro e pelo Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, encontro reuniu militantes, impactados, pesquisadores e organizações
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Por Rosilene Miliotti, FASE (texto e fotos)
Organizada pelo programa da FASE no Rio de Janeiro e pelo Grupo Nacional de Assessoria (GNA), a roda de conversa “Construção do Bem Viver e defesa dos bens comuns: práticas e ideias alternativas à mercantilização das cidades” segue o rumo dos debates que a organização tem organizado, juntamente com outras instituições e movimentos sociais, com objetivo de aprofundar a reflexão sobre a relação entre Bem Viver, os bens comuns e o direito à cidade. Temas como privatização e injustiças ambientais urbanas, as resistências e as alternativas coletivas, a formação de redes, os circuitos econômicos comunitários, a economia feminista, a violência estatal nos territórios, entre outros, também estiveram em pauta. Aspectos teóricos e políticos foram o centro do debate realizado no Rio de Janeiro nos dias 5 e 6 de junho.

Biólogo Julio Holanda, assessor parlamentar e membro do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS) do RJ


Como fazer este debate, com quem e a partir de onde? Para Joana Barros, integrante do GNA da FASE, estas são as grandes questões que direcionam a discussão. “Não estamos fazendo um debate clássico: bens comuns é isso ou aquilo. Nosso objetivo é construir um diálogo de práticas de leitura crítica, acolhendo perspectivas teóricas divergentes”, explica. A assessora destaca a realização de outros dois seminários sobre o tema para que movimentos sociais, acadêmicos e militantes possam aprofundar a defesa pelos comuns em cidades como Rio de Janeiro, Recife e Belém. Aercio de Oliveira, coordenador do programa da FASE no RJ, ressaltou a diversidade de atores envolvidos no debate durante os dois dias de encontro. “Abordar o tema dos bens comuns e o Bem Viver de diferentes pontos de vista foi um aspecto positivo do seminário, mas ao mesmo tempo desafiador. Os participantes tinham acúmulos e práticas sociais muito diferenciadas”.
O sociólogo Cândido Grzybowski, diretor do Ibase e conselheiro da FASE, acompanha a discussão desde 2009. “Na globalização nos tornamos muito dependentes”, diz. Para ele, é preciso priorizar a coletividade ao invés de consumir. “Temos que repensar os nossos lugares como seres dotados de consciência deste planeta ameaçado. Afinal, somos parte da biosfera. Nossa vida não esta acima e nem ao lado, mas dentro da lógica natural”, define. Ele ressalta ainda que viver é conviver, compartilhar e cuidar, sendo “esses princípios éticos da vida dentro da ética dos comuns”. Mas o que torna um bem comum? De acordo com Grzybowski, os comuns são tudo aquilo que as relações identificam e geram como comuns. “As sementes se tornam comuns porque há um banco de sementes. A necessidade nos leva a criar bens comuns. O que caracteriza uma cidade como bem comum é a tensão entre território e negócios. A favela pode ser tratada como o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] define, [como um aglomerado subnormal], ou a favela é cidade?”, questiona.
Aercio iniciou sua exposição sobre o tema destacando que há uma carga utópica muito forte quando se fala em bem comum no meio urbano. “Quando pensamos o futuro, tendemos a dar um salto entre o que é e o que pode vir a ser, mas fazemos extrapolações e esquecemos o cotidiano. Margaret Thatcher, em seu primeiro discurso, disse que não existe sociedade, existem pessoas. Hoje, o que vivemos não é um simples estágio do capitalismo, isto é carregado de moralidade e ética que justificam determinados comportamentos no cotidiano”. Para Aercio, outro complicador dessa discussão é o fato da cultura urbana ser voltada para o privado. “No urbano tudo é mais atomizado e as relações são muito mais competitivas. É um desafio termos experiências dos comuns em áreas adensadas, no Rio de Janeiro temos 12 milhões de habitantes, independente das forças do capital, como pensamos o mobiliário urbano? Como se enfrenta, por exemplo, [os problemas do] sistema de transporte? Como combinar estes diferentes saberes?”, problematiza.

Participantes escolhem fotografias para atividade


O fotógrafo Luiz Baltar levou para a roda de conversa as vivências e resistências na cidade a partir de seu trabalho documental. Para ele, a fotografia tira da invisibilidade histórias que não têm lugar na mídia comercial, refaz narrativas visuais das periferias em um momento em que essas regiões só têm destaque na imprensa a partir das ausências. “Registro a luta pela moradia desde 2009. De lá para cá, aprendi muito, inclusive que a luta não é só por casa, mas pelo direito à cidade. Considero que a fotografia é uma arte de encontros que só acontece quando você se reúne com os personagens e os cenários. A autoria é sempre compartilhada”, conta. Ao final de sua fala, Baltar convidou os participantes a escolherem fotografias e a dizer o que elas representavam.
Gabriel Strautman, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), fez uma crítica à gestão corporativa dos territórios. “Temos discutido o controle no nível extremo que a prefeitura [do Rio de Janeiro] exerce sobre a cidade. Até o uso do bilhete único vira informação para o consumo e para o controle sobre as nossas vidas. O que isto representa em relação à gestão corporativa da cidade?”, questiona. Gabriel também problematizou questões relacionadas ao consenso entre moradores de regiões impactadas pela exploração das grandes corporações. “Para uma empresa, tempo é dinheiro. Então, construir consenso não é lucrativo. Os governos não estão dispostos a bancar processos democráticos. Temos o [João] Dória, [na prefeitura de] São Paulo, mas temos também o [Donald] Trump, nos Estados Unidos, e o [Maurício] Macri, na Argentina. Esta ascensão dos empresários ao poder reforça esta despolitização na gestão do Estado e do território. É acabar com a política e voltar a cidade para o lucro”. Gabriel denunciou ainda que muitas empresas terceirizam o trabalho de ONGs para diminuir os conflitos e construir consensos. “Não é o engenheiro que vai falar com os quilombolas, são sociólogos e muitas vezes representantes de organizações”, exemplifica.
Estratégias de resistências como Bem Viver
Rachel Barros, educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro, abriu o debate no segundo dia de atividades falando sobre sua preocupação com a privatização de espaços públicos e a destruição de laços de coletividade. “A relação entre o que é produzido e vivenciado pela população não ganha espaço”, lamenta. Para ela, a violência é um fator importante que contribui para a destruição ou controle das formas organizativas nas cidades.

Monica Sacramente


Monica Sacramento, da organização Criola, pontuou sua fala a partir da juventude e do movimento negro. “Fiquei pensando qual contribuição eu teria para dar sobre Bem Viver e bem comum a partir do meu lugar. Somos o que acumulamos como memória, e memória é escolha. Todos escolhemos o que lembrar e o que apagar. Escolhemos nossos heróis, representantes e escolhemos quais saberes são mais legítimos ou não. Mas se não discutirmos nas mãos de quem está o poder, [e sobre] quem abre mão do privilégio para construir estas narrativas, daqui há 10 anos estaremos aqui discutindo a mesma coisa”.
O vídeo AfroTranscendence, onde Mãe Beth de Oxum fala da importância do povo, principalmente negro, ter acesso à criação de conteúdos de comunicação, abriu a apresentação de Sil Bahia, diretora do Olabi e do Projeto #PretaLab. “Vejo a internet como um bem comum, mas ainda precisamos passar pelo processo de significação dela como ferramenta. A comunicação precisa ser pautada e nossa voz precisa ser ouvida. Antigamente, a tecnologia de antenas era só usada nos quartéis do Exército, mas o bispo Edir Macedo já fazia transmissão a partir delas. Temos que fazer este enfrentamento e ter as rádios para mostrar o povo preto e indígena. Porque sem terra, sem comunicação e sem água, nossa vida não tem sentido”, analisou. O #Preta Lab tem como objetivo reunir dados sobre mulheres negras nas tecnologias. “Temos um país que aboliu a escravidão há 130 anos, mas em 120 anos a Universidade de São Paulo (USP) não formou nem 30 mulheres em tecnologia. A internet é um bem comum e inóspito para as mulheres, onde o racismo se reproduz e as desigualdades estão acirradas”, afirma Sil.
Mudanças climáticas e democracia como bem comum
No encontro, foram abordados ainda os horizontes estratégicos para o direito à cidade. O biólogo Julio Holanda, membro do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS) do Rio de Janeiro, tratou dos bens comuns a partir das injustiças ambientais nos territórios urbanos. “Os oceanos estão mais quentes e ácidos. A redução da biodiversidade está crescendo em ritmo acelerado. Estão previstos para a região nordeste mais cinco ou seis anos de seca. Estudos recentes mostram o Rio de Janeiro como a cidade possivelmente mais afetada pelas mudanças climáticas na América Latina”, pontuou.

Ainda de acordo com o biólogo, os efeitos das mudanças climáticas, na verdade, intensificam os problemas que já temos hoje. “Não é possível falar sobre degradação ambiental de forma abstrata como se os benefícios fossem distribuídos de forma igualitária[entre as populações]. Os locais mais poluídos e degradados são as áreas habitadas pelo povo negro nas periferias urbanas. Segundo a Agência Nacional de Água [ANA], 75% da água vão para irrigação. Apenas 8% é para o abastecimento humano”, afirmou. Julio acredita não faltar recursos, mas prioridade em relação a onde e como se faz investimentos. “A ideia da crise hídrica é muito mais de como este recurso é distribuído. Há moradias em que as pessoas não têm água durante meses. É importante ainda fazer um recorte por gênero. As mulheres são as mais atingidas pela injustiça ambiental”, ressaltou.

Para Julio, a questão da democracia é central para discutir os bens comuns, pois o poder de decisão não tem sido colocado na mão da população. Que cidade queremos? A pergunta feita em um dos slides apresentados por ele traz questionamentos a partir da elaboração do Plano Diretor. “Quem de nós participou da elaboração do plano de resiliência, resíduos sólidos ou arborização? Precisamos oxigenar esta discussão e trazer novas pessoas”, defende.
Alexandre Araújo Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), diz que poucas questões suscitam tão diretamente a questão dos comuns quanto a climática. “Há pouca concepção disto na sociedade. Os sistemas de suporte à vida precisam ser tratados como comum. Tem horas que o conceito de democracia me assusta. Precisamos ouvir povos não humanos também, e sermos capazes de interpretar este processo”.
Segundo o professor, quando falamos no aumento da temperatura da Terra em 2°C ou 4°C, as pessoas não têm noção do que isso representa, mas ele alerta que isso simplesmente significa o fim da civilização humana. “Minha fala é sempre muito dura. Mas o quadro é realmente de uma catástrofe em curso. Costumo dizer que não é o mar vindo comer na praia, é o esgoto subindo”, expôs Alexandre.
Veja as fotos do encontro.

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