Trancar a juventude fere a lei, é cruel e ineficiente

Proposta de aumentar o tempo de internação de jovens infratores, em debate no Congresso Nacional, segue o raciocínio de um punitivismo inócuo e mata qualquer possibilidade de inserção do adolescente na sociedade, afirmam especialistas

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 21-02-2013, 13h30: Adolescentes da Fundação Casa da unidade Vila Conceição, na zona leste da capital paulista, fazem uma rebelião desde as 9h30 de hoje (21). (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

Adolescentes da Fundação Casa da unidade Vila Conceição, São Paulo (Foto: Marcelo Camargo/ABr)


Por Verena Glass
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 27 anos neste mês de julho sem ter sido implementado ou respeitado pelo Estado, que tem falhado em cumprir o mínimo de cuidados e prover a estrutura básica para o desenvolvimento são da população mais jovem e mais vulnerável, principalmente nas periferias do país. Mais além, a despeito das graves deficiências do Estado na garantia dos direitos dessa juventude, atualmente há mais de 50 projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que propõem tanto a diminuição da idade penal de 18 para 16 anos quanto, como pretensa alternativa, o aumento do tempo de internação de adolescentes infratores. Trata-se de um processo de revisão não só do regime de medidas socioeducativas, como do próprio ECA, que determina que a reclusão deve ser a última alternativa e indica tempo máximo de internação de três anos.
A opção de tentar substituir a redução da maioridade penal (quatro propostas de emenda à Constituição tratam do tema: 74/2011, 33/2012, 21/2013 e 115/2015), aprovada pela Câmara em 2015 e atualmente em trâmite no Senado, pelo aumento do tempo de internação foi abraçada pelo governo federal ainda na administração do PT em 2015, apesar de o autor do texto acolhido ser do senador José Serra (PSDB-SP), então na oposição. Seu Projeto de Lei (PL 2517/15), aprovado no Senado e atualmente em análise na Câmara, prevê que jovens que praticaram infrações consideradas graves possam permanecer até dez anos em reclusão (há outros textos sobre o tema em análise, como o PL 2116/15, proposto por deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), que prevê internação de até 9 anos).
Esta modificação do ECA, que tem gerado grande polêmica entre especialistas e organizações que atuam na defesa de crianças e adolescentes, foi tema de debates realizados no último dia 13 de julho, data do aniversário do ECA, durante a II Semana de formação em direitos humanos e educação popular da ONG Ação Educativa. As atividades foram promovidas pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com o Fundo Brasil de Direitos Humanos e a Ação Educativa.
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Debates na Ação Educativa reuniram especialistas como Ana Vladia Cruz, Mercedes Guarnieri, Bergman de Paula e Rodrigo Deodato (Foto: Verena Glass)


De acordo com a psicóloga Mercedes Guarnieri, membro do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, a Constituição garante a crianças e adolescentes o direito à chamada prioridade absoluta de proteção integral. No entanto, a dificuldade de famílias de baixa renda de propiciar esta proteção em função de fatores como pobreza, escolas deficitárias, impossibilidade de acompanhamento, falta de estruturas de lazer, formação, etc, tem naturalizado uma cultura de terceirização desta responsabilidade para instituições (privadas ou do Estado) bem como o punitivismo e o disciplinamento. Neste sentido, os aparatos repressivos, as instituições de “acolhimento” e o encarceramento – ou privação de liberdade – fazem parte de um paradigma de “reeducação” profundamente entranhado no senso comum.
Sem espaço para crescer
Mas o que significa privar um adolescente de liberdade, principalmente nas estruturas do sistema socioeducativo brasileiro que em quase nada se diferencia do superlotado e violento sistema prisional? “A privação de liberdade é basicamente inibidora do desenvolvimento dos jovens. Significa exclusão da família, das afetividades, das espiritualidades, do desenvolvimento das aptidões sociais, da empatia, do mundo la fora, da tecnologia. Os centros socioeducativos determinam uma rotina mortal, são tolhedores ao extremo, muitas vezes estipulam até hora para ir ao banheiro. Muitos jovens são submetidos à tortura, ao frio, não têm cama. Há revistas constantes, não há nenhuma privacidade, não há nenhuma dignidade. O aumento do tempo de internação significa aumentar o tempo sem mundo”, afirma Mercedes.
“Toda forma de isolamento é a mortificação do Eu”, acrescenta Ana Vladia Holanda Cruz, doutora em psicologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS/CEIFR), em Paris. Segundo ela, a premissa da “reeducação” do sistema socioeducativo para jovens em conflito com a lei é falsa, uma vez que a aposta do sistema é no fracasso, no “não tem mais jeito”. “Claro que estas situações levam à rebeliões, porque não se vive naquelas condições. O jovem é visto como objeto de controle e disciplinamento, o que remete claramente a um contexto escravocrata”, afirma Ana Vladia, para quem o “publico alvo” da política de repressão militarizada do Estado brasileiro é claramente os jovens pobres, negros e periféricos, identificados como inimigo da sociedade.
Se, por um lado, a função do cárcere é tornar o sujeito politicamente dócil e economicamente útil, como apontou Foucault, por outro, para a educadora popular da Ação Educativa, Bergman de Paula, grosso modo a juventude pobre, negra e periférica do sistema socioeducativo já não serve mais para este mercado nem para este Estado. “Os jovens da Fundação Casa são aquilo que o Estado não quer mais, a escola não quer mais, a sociedade não quer mais. Como então sustentar o discurso da reinserção?”, questiona. “É como a lógica da internação compulsória [de dependentes químicos], o objetivo é tirar da vista, é tornar invisível”.
Sistema caro e ineficiente
Num cálculo rápido, aponta Rodrigo Deodato, advogado e assessor do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), o aumento do tempo de internação inflaria o numero de jovens reclusos dos cerca de  23 mil atuais para cerca de 195 mil internos em 2025 – o que significaria um gasto público adicional de R$ 412 bilhões/ano. Em 2015, ele participou de inspeções em instituições socioeducativas de 12 estados. “É impressionante como a tortura e a violência institucional nos dias de hoje infelizmente formam a base daquilo que chamamos de sistema socioeducativo aqui no Brasil. Em todas as instituições inspecionadas nós encontramos praticas ostensivas e tortura e violência institucional”. E é neste ambiente que se propõe prolongar a permanência de jovens infratores, aponta.
Rodrigo também problematiza o senso comum da opinião pública. “Os defensores da prática de reclusão dos jovens costumam dizer ‘ah, mas o aumento do tempo de internação é apenas para crimes violentos, intencionais; nós entendemos o crime contra a vida como uma violação do direito humano à vida’. Mas a violação de um direito humano não justifica a violação de qualquer outro direito humano”, defende o advogado. E pondera: “Esquecermos que, se ouve um crime violento, letal, intencional, muitas vezes o adolescente infrator vem sendo assassinado, todos os dias, pouco a pouco, pela total ausência de acesso às politicas publicas. Ele não está sendo tratado como adolescente. A forma como o Estado está atuando é para a desconstrução do indivíduo, não para sua inserção na sociedade. Então a ideia é: se o ECA não está sendo efetivado como deveria, lutemos para melhorar. Para piorar, não há a menor necessidade”.
O Brasil não está só
Além dos vários especialistas brasileiros no tema dos direitos de crianças e adolescentes, também participou do debate no Seminário a comunicadora uruguaia Tatiana Magariños, diretora do documentário Encerrados («Trancados») e membro da Casa Bertolt Brecht. A principal potência do filme, que discute as políticas de reclusão de adolescentes no Uruguai, são os depoimentos de jovens internos que passam seus dias inativos, fechados em pequenos espaços, muitas vezes dopados, sem qualquer privacidade, em estado quase vegetativo.  O maior drama desta situação, apontam psicólogos e educadores entrevistados no filme, é o fato de que a adolescência é exatamente a fase da vida onde o ser humano desenvolve suas habilidades sociais e de interação com o mundo. É a fase das experimentações, das atividades, do desenvolvimento emocional, e do tempo de longa duração. Ou seja, na fase adulta, temos a impressão que o tempo voa, que não conseguimos fazer tudo que é preciso. Na adolescência, o tempo tem outra duração. Imaginemos então o que significa para um jovem passar dias, semanas, meses, anos, em pequenos cubículos, sem estímulos, sem contato com o mundo e seus avanços, sem afetividades, sem a família. Imaginemos dez anos nesta situação.
Vaja abaixo o filme Encerrados com legendas em português

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