Um negro Fórum em uma negra cidade

Depois de muitas edições promovidas em distintos lugares como Índia, Quênia, Venezuela, Dakar e Brasil, o Fórum Social Mundial retornou às terras brasileiras e realizou sua nova edição na cidade de Salvador, Bahia, a primeira capital do país. Participei de quatro edições do Fórum ao longo da minha vida de jornalista: três em Porto Alegre e uma em Caracas, com base nisso, posso dizer que este foi um Fórum negro, tanto em relação ao debate, quanto à participação
Por Christiane Gomes
Pudera, Salvador é uma das cidades com maior presença da população afrodescendente no Brasil. E as diversas nuances que cercam as discussões sobre discriminação e racismo, e suas intersecções com classe e gênero estiveram presentes nos ambientes que permearam o campus da Universidade Federal da Bahia, onde a maior parte das atividades do Fórum aconteceram. Genocídio da juventude negra, feminismos negros, ancestralidade, encarceramento, guerra às drogas, para ficar em apenas algumas reflexões que atingem em cheio a população negra brasileira.
Tal fato é uma conquista de movimentos e coletivos que, nos últimos anos, conquistaram, com suas ações e lutas, a visibilidade para assuntos urgentes de serem pautados na esquerda no Brasil. Por sua vez a força, destes movimentos é continuidade da trilha histórica do movimento negro e de mulheres negras e de uma intelectualidade negra que, apesar de sofrer com a invisibilidade imposta pelo racismo nacional estruturante, produz conhecimentos e estudos sobre os seus efeitos na democracia brasileira. O mito da democracia racial que por muito tempo vigorou no Brasil, não têm mais espaço e não mais se sustenta.
Como mencionei, o Fórum foi espaço para que diversos aspectos do racismo brasileiro pudessem ser discutidos. Dentre eles, o debate “Carrocracia e Racismo” (assista), resultado de uma parceria entre a Fundação Rosa Luxemburgo e o Centro Cultural La Frida, realizado no marco do lançamento do livro CARtoons, de Andy Singer, colocou no centro do debate a relação entre dois temas que, num primeiro momento, parecem não se conectar muito, mas que guardam uma relação da mescla entre racismo e machismo.
O diálogo entre o autor do livro e Jamille Santana, do projeto Preta, vem de Bike (iniciativa que ensina mulheres negras periféricas a andarem de bicicleta, com noções de manutenção mecânica e que promove bicicletadas, onde muita gente, estranhando o fato de um grupo de mulheres negras andarem de bike nas ruas da capital baiana, chegam ao extremo de perguntarem se tal feito se trata de alguma performance).

Christiane Gomes, Jamile Santana e Andy Singer

Christiane Gomes, Jamile Santana e Andy Singer


O debate revelou como o uso da bicicleta para a mulher negra é negado e como este corpo negro não encontra muitas vezes a facilidade de ir e vir, principalmente, quando falamos nas periferias.  A fala contundente de Jamille escancarou para as pessoas presentes a intersecção entre raça, classe e gênero para se compreender o viés muitas vezes elitista que cerca o debate sobre a mobilidade e o uso da bicicleta.
O FSM também abrigou a reunião do Fórum Permanente de Mulheres Negras (que reúne entidades mobilizadoras da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver) que celebrou os 30 anos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que aconteceu em Valença, no Rio de Janeiro, um marco na organização feminista preta.
A conjuntura política daquele 1988 e a de hoje, 2018, guarda similaridades, que apontam como a luta por direitos não cessa e que as mulheres negras, periféricas são as mais suscetíveis ao endurecimento e à perda das políticas públicas. O encontro foi potente ao propiciar um espaço de encontro e de fortalecimento entre gerações de feministas negras, fazendo valer ao máximo o lema de que nossos passos vêm de longe. A articulação resultou na definição do II Encontro Nacional de Mulheres Negras que deve acontecer em novembro, em Goiás.
As atividades seguiam seu curso, ocupando as terras da UFBA, e me causando certa nostalgia das outras edições, e reflexões sobre as transformações (ou a falta delas) que aconteceram desde a minha última participação há inacreditáveis 13 anos, quando o FSM teve seu lugar em Caracas. Se antes “Outro Mundo era possível”, agora “Resistir é criar, Resistir é transformar”. Palavras pertinentes no momento político que atravessamos no Brasil, onde a palavra resistência nunca fez tanto sentido.
Foi quando amanheci a quinta, 15 de março, com uma notícia que me impactou como um soco no estômago: o covarde assassinato da vereadora Marielle Franco, mulher negra, lésbica e periférica, oriundo da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro e que teve uma expressiva votação nas eleições de 2016. Tive contato com o trabalho de Marielle em 2017, quando trabalhava na organização dos eventos de lançamento do livro Calibã e a Bruxa, que contaria com a participação de sua autora, Silvia Federici.
Mobilização do Fórum depois do assassinato de Marielle Franco

Mobilização do Fórum depois do assassinato de Marielle Franco


Uma das atividades estava sendo organizada no Museu da Maré e teria em seu público, mulheres negras lideranças de movimentos populares da própria comunidade e de outras do Rio de Janeiro. Marielle contribuiu, através de articulações realizadas por uma de suas assessoras, para divulgar a atividade e garantir que as mulheres que estavam na linha de frente das lutas sociais, pudessem ouvir Federici e receber um exemplar de seu livro, com o nítido objetivo de contribuir em suas lutas.
Naquele dia, tive a noção do quão importante era o trabalho desenvolvido por ela e como se firmava como uma referência para as meninas daquela comunidade. Na quinta, 15 de março, o FSM paralisou suas atividades da manhã e suas e seus participantes saíram em marcha pela UFBA e depois pelas ruas da cidade para reverenciar a memória de Marielle, chorar sua brutal partida e, sem minutos de silêncio, gritar em alto e bom som que a resistência continua.
O primeiro depois de mãe
Este Fórum também teve um significado pessoal importante porque junto de mim estava a minha bebê, Serena Odara que, no início de sua vida de cinco meses, pode respirar a atmosfera que move as pessoas que se mobilizam em prol de mudanças na sociedade. Aproveito aqui para agradecer a presença de minha mãe, Marlene: sem ela nossa participação não seria possível. A missão de criar uma mulher negra nesta sociedade, só me enche de gana de seguir trilhando o caminho de resistência de minhas ancestrais. “Resistir para transformar”, como diz a palavra de ordem do Fórum neste 2018.
E imbuída das transformações no olhar que a maternidade me impõe pude perceber que o FSM não contava com nenhum espaço onde as mães pudessem deixar suas crias para participar dos debates. Inclusive vi poucas crianças no ambiente do campus. Na marcha de abertura, por exemplo, eu que lá estava com minha filha amarrada em meu corpo, não identifiquei nenhuma mãe com seu bebê.
Estranhei, confesso e me perguntei: onde estão as mães? Onde estão suas crias? Será que elas vieram para o Fórum? Lutar por uma nova sociedade passa por refletir sobre como tratamos nossas crianças quando elas iniciam suas vidas e as mulheres que têm como trabalho criá-las. A maternidade é linda sim, mas é construída com muito trabalho e um trabalho ininterrupto, que não é valorizado e sequer visto e considerado.  Os feminismos precisam lidar com esta realidade.
O leitor ou a leitora pode pensar: “Ah, ela diz isso porque agora é mãe”.  É exatamente isso: trago este questionamento justamente porque agora lido, dia a dia, com os desafios que a maternidade coloca às mulheres, cada uma em sua especificidade. Por isso, cabe a nós, mães, pautar estas questões. E é isso que faço neste texto e nas minhas ações cotidianas e foi isso também que os dias em Salvador me fizeram pensar.
Fotos: Verena Glass

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