Em evento em São Paulo, o filósofo italiano Antonio Negri e o economista equatoriano Alberto Acosta trocam impressões, a partir de suas reflexões mais recentes, sobre o papel e a força de movimentos emancipatórios anticapitalistas no Norte e no Sul global
Por Verena Glass (texto e fotos)
Na noite de 26 de outubro, o pequeno restaurante Al Janiah, localizado numa ruazinha escura no centro de São Paulo nas cercanias do metrô Anhangabaú, estava abarrotado. Chuviscava lá fora, e dentro uma pequena turba alegre e ruidosa se acotovelava, se misturava e atravancava as vias entre mesas e cadeiras, tornando quase impossível o atendimento “normal” da clientela faminta. Cerveja se pedia diretamente no balcão, mas assim que a garrafa chegava à mesa, qualquer um que a alcançasse se servia sem cerimônia nem preocupação sobre como seria paga a conta.
Na maior mesa, onde iam sentando e levantando num fluxo contínuo boa parte dos presentes, apenas duas figuras mantinham assento cativo. De frente para a porta, o filósofo italiano Antonio Negri, 83 anos, dava atenção, sempre gentil e sorridente, a quem puxasse conversa à sua direita ou esquerda. Do lado oposto, de cara para o balcão, o economista, ex-ministro e ex-presidente da Assembleia Constituinte equatoriana, Alberto Acosta, 68 anos, seguia o exemplo. Quando havia tempo, trocavam algumas palavras enquanto se serviam de pita com homus de um prato entrincheirado entre ambos, cujo conteúdo era disputado por quem mais estivesse ali naquele momento.
O pequeno pedaço de tempo que juntou Negri e Acosta em um espaço criado e gerido por refugiados palestinos – o Al Janiah se tornou símbolo de resistência e solidariedade entre migrantes e seus apoiadores em São Paulo – se configurou como que numa mágica conjunção e confirmação das duas teses – nem sempre convergentes – que cada um vem trabalhando no último período, e que, pouco antes, haviam debatido no evento-diálogo “A Revolta da Multidão e a Constituição do Bem Viver”, na Biblioteca Mario de Andrade.
Em parceria com Michael Hardt, Negri escreveu uma trilogia (Império, Multidão e Bem-estar comum), apresentando novas teses para o debate sobre como pensar a política e as revoltas no mundo de hoje. Entre os temas mais candentes, e que abriu o diálogo com Acosta naquela noite, destaca-se a questão: como entender os levantes recentes da chamada Primavera Árabe? Como esses fenômenos dialogam com os movimentos Occupy, nos EUA, ou os Indignados na Espanha? Qual o papel destas revoltas na reconfiguração das lutas emancipatórias e anticapitalistas da atualidade?
Para Negri, a motivação das insurgências massivas na Europa e nos Estados Unidos transpassou – só que de forma mais potente – os levantes nos países árabes: a busca da liberdade em termos mais radicais, de uma forma como nunca havia ocorrido antes. Um movimento que visava destruir uma restauração autoritária, totalitária, religiosa e liberal para os ricos. Que questionou o poder acumulado na mão do capital transnacional e o consequente enfraquecimento das democracias. Um levante contra o capital financeiro e sua centralização do poder, perpetrado não por uma massa indistinta, mas por uma camada de pessoas com estudo e alto nível de formação (principalmente na Síria e no Egito), onde cada singularidade poderia se expressar e se tornar uma manifestação política. Mas também um levante que resultou em um dos mais brutais processos de repressão, e, consequentemente, na pior crise humanitária da história recente frente a onda de migrações forçadas pela guerra.
Mas o fenômeno das mobilizações massivas em si desafia a pensar sobre o que simbolizam, em termos de força política, as revoltas recentes no mundo, propõe Negri. Ou seja, se, como escreveu, “a multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos”, nos tempos atuais não é mais possível pensar a sociedade em temos de classes homogêneas, em operariado de chão de fábrica; mesmo porque hoje se trabalha de forma criativa, cognitiva («mesmo quando se é comandado, há participação criativa»). Assim, “vamos pegar o termo de multidão como base política para construir uma democracia”, propõe Negri. A questão é conseguir interpretar essa multidão em todos os níveis em que as diferenças estejam presentes, pondera.
Outro paradigma?
Mas, e se tentássemos responder à crise civilizatória do nosso tempo, agudizada pelo sequestro do poder e da democracia pelo capital, com um outro paradigma?, propõe Alberto Acosta, cujo último livro, O Bem Viver, foi lançado no Brasil em fevereiro deste ano.
“Grande parte do pensamento dominante da atualidade provém da Europa: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo, o comunismo; e dentro dessa colonialidade do poder, do ser e do saber, encontramos [os brancos ocidentais] respostas aos nossos problemas. Mas, na Amazônia e nos Andes, outros grupos sociais emergiram, que não se encaixam exatamente nessas categorias da modernidade política. São os movimentos indígenas, que abrem a porta para visões muito mais plurais e transcendentais”.
De acordo com o economista equatoriano, o outro paradigma proposto pelas populações indígenas (e não apenas as latino-americanas, mas também povos da África ou da Índia) é o viver no mundo de acordo com outros horizontes e sentidos não euro ou antropocêntricos, que diferem das lógicas da modernidade. E é neste sentido que tem tomado força o debate acerca dos horizontes e paradigmas do Bem Viver.
Com o fortalecimento das organizações indígenas, prossegue Acosta, um amplo setor que até então era considerado pelas esquerdas como o proletariado explorado do campo, a ser defendido nas lutas revolucionárias, passou a reivindicar não apenas um protagonismo político mas também o reconhecimento do direito à própria visão de mundo, de gestar suas próprias propostas a partir de suas próprias realidades.
Nesta nova configuração do movimento emancipatório de base indígena, não há uma ruptura total com as lutas populares; há a presença do marxismo e do socialismo, mas são incorporados outros horizontes, como a ecologia, os direitos da natureza, a descolonização, a despatriarcalização, o feminismo. Explica Acosta: este processo de questionamento dos paradigmas civilizatórios ocidentais se dá em meio a uma crise do Estado-nação, colonial, neoliberal. Ou seja, são os indígenas e outros setores populares que lideram na América Latina a luta contra o neoliberalismo em sua fase mais avançada, como o extrativismo predatório e em grande escala, intrinsecamente violador de territórios, direitos humanos, culturas e da própria sobrevivência. “Assim, nesse contexto na America Latina quando o conceito de desenvolvimento entra em crise e o conceito de progresso deixa de ser a promessa mobilizadora para as populações tradicionais, aparecem as teses do Bem Viver”. Os povos tradicionais passam a exigir um reconhecimento social e cultural, e apresentam uma série de códigos de conduta que nos parecem, aos de origem ocidental, complexos. Apresentam uma proposta que vai além do antropocentrismo e do utilitarismo, que requer o reconhecimento da plurinacionalidade, da pluri e interculturalidade, novos conceitos que propõem uma ruptura na civilização moderna e capitalista
Em outras palavras, se propõe, enquanto Bem Viver, o encontrar com a natureza e reconhecer seus direitos. Reconstruir o comunitário e romper o individualismo baseado no consumo. Voltar a reencontrar-se no comunitário. “Não se trata só de sociedade, mas de comunidade. E nesse sentido não pode haver apenas um bem viver, temos que falar em bons conviveres”, afirma Acosta.
Ma in che modo?
É certo que sim, retruca Negri. Mas e como fazer? “O poder é forte e duro, e está na mão do capital. O discurso do Alberto tem que ser repetido na luta, não é uma utopia, mas uma organização do desejo. Mas entre a organização do desejo e o possível existe a política…”
A questão-chave, prossegue Negri, é o fato de que o desejo não se concretiza sempre. Pessoas vão presas quando se rebelam. Princípios fundamentais da democracia estão em perigo. A crise mundial é uma realidade. Enquanto se luta, é preciso viver. O capital incide sobre a nossa vida. Existem operários que trabalham em fabricas que poluem, mas que têm medo de ficar sem trabalho. “A vida está toda organizada sem a natureza, nascemos em hospitais, temos empregos e relação com o capital e os patrões, há um sistema de educação ao qual estamos submetidos. Existe uma política para o fazer viver, que te coloca em condição de ser extorquido pelo capital. A relação homem-natureza é complexa, mas esse não é o problema. O problema é como fazer para chegar no Bem Viver, uma vida boa”, desafia Negri.
Ao que responde Acosta: “O Bem Viver não é uma teoria, mas uma prática. O Bem Viver está presente em muitas partes do planeta como prática e cultura. Nessa perspectiva, não se trata de construir um programa político, mas de compreender formas de vida que estão em prática”. Simples assim.
Pequeno mundo possível
No Al Janiah, um pedacinho de vida reconstruída por e para quem vivenciou, de alguma forma, a violenta repressão que se seguiu à Primavera Árabe, naquele 26 de outubro uma pequena multidão que havia acompanhado o debate na Mário de Andrade se acotovelou harmoniosamente nas suas diversidades de debates políticos ao redor da mesa de Negri e Acosta. Compartilhou-se comida e cerveja sem combinações prévias, só foi assim. De alguma maneira, pagaram-se contas sem calculadoras e equacionaram-se consumos à margem das regras do capitalismo gastronômico. Enquanto chovia em São Paulo, naquele pedacinho da cidade praticou-se o bem viver em multidão. Um dos muitos tipos de bem viver, tudo junto e misturado.
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