Dois anos depois do golpe, camponeses paraguaios reclamam de impactos da expansão da soja

Capitaneada por latifundiários brasileiros, produção industrial voltada para exportação substitui cultivo de alimentos. Concentração fundiária fragiliza democracia.
Por Daniel Santini, Repóter Brasil, 22/08/2014.

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Em 15 de agosto de 2014, dia do aniversário de um ano da posse do presidente Horacio Cartes, caravanas de camponeses foram até a capital Assunção para protestar. No destaque, manifestante exibe chamando presidente de capataz dos sojeros, como são conhecidos os produtores de soja. Foto: Daniel Santini.

 
O aniversário de um ano da posse de Horacio Cartes como presidente do Paraguai foi marcado por protestos. Milhares de pessoas ocuparam as ruas da capital Assunção no último dia 15 de agosto para reclamar das políticas neoliberais adotadas pelo governante, como a adoção de Alianças Público Privadas (APP) (semelhantes às Parcerias Público Privadas brasileiras), para denunciar a criminalização de movimentos sociais, e para lembrar o golpe sofrido pelo presidente Fernando Lugo, em 22 de junho de 2012. O ato foi pacífico e contou com a participação de famílias, crianças e aposentados – entre as reivindicações, desde cobranças sobre o pagamento de pensões até a defesa de ensino superior gratuito de qualidade, passando pelos gritos e cartazes de camponeses reclamando do monocultivo de soja.
Cartes foi eleito em 2013 e substituiu Federico Franco, o vice-presidente que assumiu após Lugo ser deposto em um processo-relâmpago promovido pelo Congresso Nacional. O fato de Lugo ter sofrido um impeachment em menos de 24 horas foi classificado como golpe pelo Mercado Comum do Sul (Mercosul) e pela União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que suspenderam o país, punição prevista em ambos acordos regionais no caso de ruptura na ordem democrática.
A queda do presidente Lugo começou em uma plantação de soja.
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No interior do Paraguai, em Curuguaty, a sequência interminável de campos de soja torna a paisagem monótona. A única variação são os silos gigantes onde os grãos são armazenados e placas de empresas como ADM, Bunge, Cargill, Monsanto e Planagro, entre outras. As plantações, que assim como no Brasil são feitas em latifúndios com adoção de variedades transgênicas e uso intensivo de agrotóxicos, têm alterado com velocidade a configuração do campo em uma história repleta de episódios violentos.
De acordo com dados do instituto Base Investigações Sociais (Base-IS), foram assassinados 115 dirigentes camponeses de 1989 até 2013 em conflitos ligados a disputas fundiárias. Inês Franceschelli, do Base IS, chama a atenção para a criminalização dos camponeses, destacando que, só na safra 2013/2014, pelo menos 180 integrantes de movimentos sociais foram processados e muitos presos. A presença de milícias privadas contratadas por fazendeiros é outra das preocupações. Fransceschelli, assim como os outros pesquisadores citados neste texto, apresentou informações sobre o tema no seminário Agronegócio no Cone Sul – Resistências e Alternativa, realizado em agosto no Paraguai.
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Placa lembra dos agricultores mortos de Marina Kue, confronto em área de cultivo de soja que que deu início ao golpe que derrubou o presidente Lugo. Foto: Daniel Santini.

Foi uma dessas disputas por terra que deu início ao processo que culminou na deposição do presidente Lugo. O episódio, que mesmo dois anos depois ainda está longe de ser esclarecido pelas autoridades, aconteceu em uma área até hoje disputada por famílias de camponeses. A área, doada para a Marinha paraguaia pela empresa Industrial Paraguaia na década de 1960, foi repassada ao Instituto de Terras (Indert), mas acabou abandonada. O terreno foi primeiramente invadido por um latifundiário local proprietário de terras vizinhas, Blas Nicolás Riquelme Centurión, conhecido como Don Blas. Ele aproveitou para plantar soja e conseguiu na Justiça um registro paralelo da propriedade.
A posse foi contestada por camponeses, que passaram a defender que ela fosse destinada para reforma agrária. A área, conhecida como Marina Kue, que em Guarani língua falada por boa parte dos camponeses indígenas, quer dizer ex-Marinha, foi então ocupada por diversas famílias. Don Blas acionou a Justiça e conseguiu o envio de tropas para retirar os camponeses e toda confusão começou. Centenas de policiais foram ao local e, em um tiroteio sobre o qual até hoje pairam suspeitas da participação de francoatiradores, 18 pessoas morreram, sendo 11 camponeses e sete policiais, incluindo oficiais que coordenavam o grupo. A tragédia foi a gota d´água para os opositores de Lugo, que há tempos buscavam um pretexto para dar início ao julgamento político do presidente.
O fato de o mandatário se dispor a dialogar e negociar com movimentos camponeses durante seu governo sempre incomodou os parlamentares de oposição. O episódio foi apresentado pela imprensa como um sinal de descontrole e instabilidade no campo, e seus inimigos políticos souberam capitalizar . A falta de habilidade de Lugo para conduzir a crise nos dias seguintes ao episódio foram decisivos para o sucesso do processo-relâmpago que culminou com sua deposição.
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Ao centro, Mariano e Nelida Castro, que perderam um filho na matança. Nas pontas, Alberto e Nestor, que foram alvejados no dia. Foto: Daniel Santini.

Um filho morto
“Desde então, investigaram somente os camponeses. Todos os pequenos foram processados e presos, estamos sofrendo desde então uma perseguição terrível”, diz Mariano Castro, que ao lado da mulher Nelida lembra do filho morto. “Ele tinha 28 anos, deixou mulher e dois filhos. E outros dois dos meus oito filhos foram feridos a bala no dia”.
O terreno da família Castro tem uma horta, pés de um tipo de laranja doce e suculenta, uma pequena plantação de cana-de-açúcar e árvores frutíferas. Liz, a neta do casal, brinca de montar um buquê colhendo pequenas ervas no caminho enquanto o avô fala.
Os dois filhos que foram baleados se aproximam. Nestor Castro chega olhando para o chão com um andar humilde, tira o boné e pede a benção ao pai. Ele teve a mandíbula destruída e acabou preso ao procurar atendimento médico. “É diferente da soja. A terra é nossa vida e vamos continuar lutando por ela”, diz, com dificuldade por conta do ferimento. Ele e o irmão Alberto, com um olhar igualmente duro e triste, cumprem prisão domiciliar, confinados ao lote em que o pai cultiva diferentes variedades, além de criar vacas, porcos e galinhas.
Horta da família Castro, em terreno próximo à plantação de soja organizada por Blas Riquelme.
Don Blas faleceu meses após o episódio, mas a disputa pelo terreno está longe de terminar. Na margem da plantação de soja, na beira da estrada, famílias ainda vivem acampadas, determinadas a retomar a área onde a matança aconteceu.
 
Fechamento de estradas
Em meio aos protestos que marcaram o primeiro aniversário do governo do presidente Carter, além da marchar em Assunção, camponeses fizeram bloqueio de estradas no interior de todo o país. Em um deles, Marina Gonçalves, falando o português que aprendeu quando morou no Brasil, explica que a principal reclamação é em relação aos agrotóxicos. Os camponeses relacionam doenças às plantações e não faltam histórias de moradores que sofreram com a aplicação de veneno. “Estava jantando e fumigaram do lado da minha casa. Passei bastante mal. A situação é cada vez pior e muitos estão indo para as cidades”, conta a mulher. A estimativa é de que nos últimos dez anos um milhão de camponeses deixaram o campo – mais do que a população de Assunção, a capital do país, com 742 mil habitantes, segundo dados do último Censo.
Marina Gonçalves, de chapéu, durante trancamento de estradas em protesto na semana de aniversário da posse de Carter. Foto: Daniel Santini.

O pesquisador argentino Carlos Vicente, da Grain, relaciona o uso crescente de veneno nas plantações ao cultivo de variedades transgênica, que dependem da aplicação de cargas pesadas de agrotóxicos. Ele lembra de como a propagação de variedades modificadas no Paraguai e no sul do Brasil serviu para forçar a aprovação do uso de transgênicos e ressalta o risco de empresas conseguirem avançar com a tentativa de patentear e controlar a distribuição de sementes. “O direito básico de agricultores de guardar sementes está sendo questionado. É um processo de apropriação de culturas e bens comuns”, afirma.
Faixa estendida no centro de Assunção na semana de protestos.
Para a antropóloga brasileira Maria Emília Pacheco, integrante da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase), do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o processo de industrialização conduzido pelo agronegócio na região tem como princípio orientador o mercado e é marcado pela concentração e o monopólio. Ela ressalta que o modelo afeta a natureza, desequilibra ecossistemas e prejudica a qualidade e distribuição de alimentos. “É preciso diferenciar alimentos de produtos e o que o agronegócio produz são produtos para exportação”, ressalta.
Fome e concentração fundiária
Em 2010, a Repórter Brasil publicou estudo indicando impactos sociais do avanço da soja no Paraguai. Segundo pesquisadores ouvidos pela reportagem durante a semana de protestos, a situação se agravou, em especial durante os dois últimos anos nos governos de Franco, o substituto de Lugo, e Carter, o presidente recém-eleito. A estimativa, feita pelo instituto Base-IS, é de que a soja tenha ocupado 3.157.600 hectares, ou 58% a área total cultivada no país na safra de 2012/2013. Inês Franceschelli, a pesquisadora do grupo, destaca que o avanço está prejudicando a produção de alimentos. Ela cita, com base em informações da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, da sigla em inglês), que enquanto a desnutrição infantil diminuiu 48,5% em média na América Latina entre 1990 e 2013, cresceu 10,5% no Paraguai no mesmo período. “É um processo de concentração fundiária muito intenso que afeta as pessoas e a natureza, e que está provocando fome”.
Organizado por empresas multinacionais, o controle das fazendas de produção de soja no Paraguai está na mão de poucos, entre os quais latifundiários brasileiros. O estudo mais recente sobre concentração fundiária, também feito pela Base-IS em 2009, indica que pelo menos 19,4% do território é controlado por estrangeiros. São 7.708.200 hectares nas mãos de quem é de fora, dos quais 4.792.528, ou 60%, são de brasileiros. A reconfiguração do campo altera a estrutura de poder da sociedade paraguaia, com latifundiários influenciando cada vez mais os rumos da política no país.
Como bem sabe o presidente deposto Lugo.
Em guarani, faixa de protesto exibe a mensagem “Fora Monsanto”. Foto: Daniel Santini.

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Daniel Santini, Repórter Brasi, foi enviado especial a Assunção e Curuguaty, no Paraguai. O repórter viajou a convite para participar do seminário Agronegócio no Cone Sul – Resistências e Alternativas, organizado entre 11 e 14 de agosto em Assunção, no Paraguai, pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com as organizações Serpaj e Base-IS. Publicado originamente aqui em 22/08/2014.
 

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