Por Mario Rodríguez*
Vou tentar falar português. Mas sei que eu vou falar com muito espanhol e, para complicar ainda mais, vou pinçar alguns termos e palavras em idiomas indígenas, porque eu não encontro ainda um jeito de explicar em espanhol ou em português alguns conceitos, em uma só palavra, que tem a ver com parte do nosso debate sobre o tema do “Bem Viver”.
Falávamos antes sobre a narração como um mecanismo da linguagem que é mais pertinente que a argumentação conceitual para o momento atual. Estamos numa fase do processo social muito rico em que, mesmo nas ciências sociais, a teoria revolucionária não dá conta, através das palavras que têm, do que está acontecendo; ela é insuficiente para dar conta dos processos que estamos vivendo. A narração se refere a colocar em circulação uma experiência: se narra o vivido, o acontecido, a experiência e é a forma como se expressa o próprio saber.
Eu vou aproveitar esta ideia e utilizar algumas narrativas, ainda que isso vá atentar contra meu tempo, porque a narração sempre exige um tempo maior que a conceituação. A narração não é a linguagem da síntese, é a linguagem da experiência que circula. Isso coloca para nós mesmos, já no início, um desafio: a tentativa de pensar os processos da circulação dos saberes e os processos do conhecimento de outro jeito. Eu acho que não conseguimos responder suficientemente a este pensamento.
O “bem viver”, mais que um conceito, é uma experiência, é um debate polissêmico, com muitas interpretações, com muitas tendências. Com algumas interpretações, nós nos achamos mais perto, mais próximos, mas com outras somos mais distantes e mesmo divergimos bastante. Nós não temos uma só noção de “bem viver” – e isto é muito importante. Mas mesmo que não tenhamos uma só noção, temos alguns elementos em comum que permitem delimitar aquele campo e aquele espaço que nós chamamos de “bem viver”. E isso coloca a experiência em um lugar central. A vida, a realidade, é ela que interpela este horizonte, estes sentidos que chamamos de “bem viver”.
A primeira palavra que eu vou utilizar, dos tantos idiomas indígenas, é uma palavra aymara: “illa” (1). A “illa” corresponde a algo que já é, sem ser ainda isso que já é. Ou seja, algo já contém o que é, mas só vai ser se você cria adequadamente isso que já é. É como um trava-língua.
E por que é importante esta palavra e esta noção?
O “viver bem” ou “bem viver” não é um futuro, não é uma noção utópica. Não é, nesse mesmo sentido, um conceito que organiza nossas ações, como uma teoria organizadora do nosso pensamento. O “bem viver” já acontece nas relações entre as pessoas, nas relações que construímos e no jeito que habitamos ou reabitamos a cidade. Mas a nossa cidade ainda não é isso que quer ser. Tem que ser criada adequadamente. Então, a gente cria nossa “illa” cotidianamente na vida. Ontem me contaram que em São Paulo os bolivianos e as bolivianas fazem uma festa muito importante, a Festa das Alasitas. “Alasita” também é uma palavra que vem do aymara. A Festa das Alasitas acontece no mês de janeiro e nela vocês podem encontrar tudo. Essa é uma festa urbana, mas essa festa urbana trouxe para a cidade as ritualidades e as práticas camponesas, porque as culturas indígenas são em seu início agrocêntricas, e mantêm sua estrutura cultural, os modos de vida, o jeito de viver a partir de ciclos da natureza e a regeneração da vida na natureza. Isso é trazido para o espaço urbano, e essa Festa das Alasitas é justamente uma festa das “illas”.
O que se encontra na cidade nessa festa? Encontra-se tudo em miniatura: casas, automóveis, a carteira profissional, dinheiro, certificado de matrimônio, certidão de nascimento para os filhos. Também tem certidão de divórcio? Também. Tem tudo, alimentos, tudo que se pode imaginar. Mas tudo isso muito pequeno. Ou seja, você pode comprar isso, mas isso só vai ter valor de “illa” se você puder criar. As coisas não são um símbolo pelo que querem ser: elas já contém o que são, mas ainda não são o todo. O todo tem que ser criado. Para produzir esse processo de criação, uma das coisas importantes é você comprar “dinheiro”, muito dinheiro. É o único dia que você pode comprar um milhão de dólares ou de euros com um boliviano. Você pode comprar, mas esse dinheiro tem sentido se você dá para outro.
Então, na festa, você entrega o dinheiro para outro, e você recebe de outros. Você recebe, pega esse dinheiro e coloca na carteira. Eu tenho esse dinheiro na minha carteira. Só é possível fazer aquela criação, esse broto novo existir, se você troca, estabelece esta reciprocidade com outros, intercambia. E aqui há uma questão fundamental do “bem viver”.
O “bem viver” e a possibilidade de pensar nesta perspectiva é colocar no cerne do debate a dimensão relacional. Não é possível falar em “bem viver” sem o relacional como lugar central. É impossível falar de coisas como bem viver como sendo o “bem viver” dela ou o “bem viver” dele. Não existe bem viver individual. Só é possível falar em estruturas relacionais. E isso muda completamente a construção da noção do sujeito, a construção da relação entre o individual e o coletivo como dicotomia. Não é possível falar de “bem viver” sem a estrutura relacional, com a possibilidade que a vida regenere os ciclos vitais para todos e todas. Todos e todas não são só humanos, como vamos observar agora.
O segundo exemplo que eu quero apresentar é sobre uma festa muito importante que surgiu na cidade de La Paz nos anos 1920. A cidade de La Paz, quando foi fundada na estrutura colonial, estava dividida por um rio como muitas cidades, separada por um ponto que estabelecia a cidade espanhola para um dos lados e a cidade dos índios para o outro lado do rio. Na cidade dos índios tinha – como em todas as partes – igrejas. A igreja foi ocupada pelos setores indígenas. Os índios que moravam na cidade tomaram, em quase todo o nosso continente, a festa da tradição cristã e a reabitaram a partir dos códigos indígenas. A festa maior na cidade de La Paz chama-se Festa do Gran Poder. O santo padroeiro, o Senhor do Gran Poder, agora com o processo moderno teve o rosto ocultado; mas o santo original tinha três rostos. Na estrutura indígena, os mundos são três. E isso é um elemento-chave na produção do sentido social, do saber e do conhecimento, e do jeito que você interpreta a vida. Na tradição indígena, há sempre dois que são complementares, tensos e complementares entre eles, e tem um no meio – que nós falamos em idiomas indígenas “taypi” -, que é um lugar de encontro das forças contraditórias tensas, mas também complementares entre elas. E o “taypi” reorganiza, redistribui o existente para reequilibrar as relações. Este é um elemento-chave dos povos indígenas para construir as relações sociais, as relações na comunidade.
Esse santo tinha três rostos, aludindo a esses três mundos que, neste momento de festa ritual, se juntam. Este é um momento muito importante no mundo indígena. Esse santo era a penetração do mundo indígena no espaço urbano. Em 1920, essa festa era muito pequena. Nos anos 1960, a festa conseguiu penetrar no centro histórico da cidade, no lugar colonial do poder. Ela ingressou lá e se tornou uma festa muito grande, onde se transforma a experiência cultural da cidade de La Paz. Hoje a festa, que aconteceu no começo de junho, movimenta uns setenta, oitenta “comparsas”, que são grupos de dança culturais. Diferente do carnaval do Rio, são quarenta, cinquenta danças distintas. Esta festa mobiliza algo como cem milhões de dólares. Tem uma capacidade econômica impressionante! Mas a festa ainda reproduz-se em forma de economia de reciprocidade, um jeito distinto de organizar as relações. Desmonta uma leitura, que também acontece muito, segundo a qual as experiências de reciprocidade e a construção comunitária da possibilidade de outras sociedades acontecem em situações de precariedade, acompanham sempre situações de pobreza. Porque a pobreza produziria a necessidade de solidariedade, de apegar-se ao outro, de contribuir, de trocar para sobreviver. Mas estamos falando de estruturas econômicas de abundância que disputam a
economia. A festa faz aquela articulação e mantém relações de reciprocidade, produz outras relações sociais e econômicas.
Então, eu não posso trabalhar com o tema do “bem viver” se não trabalho a partir do existente, agregando sentidos. Assim posso criar aquela “illa” que eu falei no começo, nesse sentido de transformação, a partir do “bem viver”.
A gente disputa a cidade porque reabita a cidade. A cidade é habitada num outro sentido, a partir das experiências indígenas nos espaços urbanos, mas também pelo que nós poderíamos chamar de “setores populares”. É verdade que não existe só um sentido de cidade. Uma das coisas mais complicadas na nossa lógica colonial do mundo capitalista de hoje é desmontar a ideia de que só existe um sentido de cidade. É interessante, mas você pode encontrar na macroeconomia, na macropolítica do país, diferenças nos programas de direita e de esquerda, ainda que muitas vezes se aproximem muito. Mas, quando observamos as políticas de esquerda e de direita sobre a cidade, encontramos um caminho único. A cidade sempre é vista do mesmo jeito por que temos que inserir em nossa vida a ideia de que existe um modelo único de cidade. O extrativismo imposto pelo sistema colonial produziu cidade. A cidade maior do continente no início da invasão europeia foi Potosi. E Potosi tinha a maior população do continente porque tinha a principal mina de exploração de prata do continente. O extrativismo gerou cidades; mas não só gerou cidades no espaço físico, produziu uma subjetividade muito mais forte. Hoje, mesmo sendo um habitante camponês, incorporamos na vida a subjetividade profundamente urbana. E aqui nós precisamos desmontar, desconstruir as ideias deste sentido único de cidade.
Nesta festa que falávamos, outro elemento importante é a territorialidade, o movimento duplo, muito importante, presente permanentemente nas experiências do “bem viver”. A necessidade de colocar a territorialidade local, o pertencimento; ou como falamos, a singularização – ao mesmo tempo a permanência das noções de comunidade e da relação com o outro. Não é possível falar desta territorialidade desde os setores aymaras na cidade de La Paz. Mas não é possível falar nem entender a festa se não encontrarmos os vínculos dos membros desses setores com a comunidade de origem camponesa.
Hoje a relação destes grupos com a China em termos econômicos, culturais e estéticos, tem incidência sobre isto. Os chineses organizam grupos de 30, 40 pessoas vinculadas à fiesta e levam para a China a cada ano, com passagem de avião paga, estadia grátis, para que as pessoas vinculadas à festa possam observar a tendência possível das cores dos tecidos, dos modelos de tapeçaria para a festa do ano que vem. E depois, a China inunda a festa com aqueles tecidos, os instrumentos, a estética. Na Bolívia, a presença da China é muito grande e não são as pessoas das elites oligárquicas, brancas, as que trabalham com a China. São esses aymaras dos setores populares que movimentam o comércio com a China. Todas as escolas de Mandarim não estão nos bairros de elite, brancos; estão nos setores populares vinculados ao comércio, nesses setores populares, porque eles se articulam com a economia chinesa.
Estamos falando de realidades muito contraditórias, muito complexas, capazes de coabitar com as lógicas do capital e, ao mesmo tempo, de criar esses outros jeitos de vida, essas outras maneiras de entender as relações econômicas, porque eles seguem reproduzindo as formas de reciprocidade, as formas de redistribuição que permitem potencializar outras economias além do capitalismo. Aí mesmo habitando desde o território do capital, disputam esta lógica desde lá. Por isso o conceito “illa” é importante para entender as experiências do “bem viver”. As experiências são contraditórias, não são puras, são complexamente entrecruzadas (2).
Eu quero visibilizar agora três coisinhas para fechar, só para provocar o debate e para depois aprofundar algumas coisas. Na estrutura do “bem viver” há um conceito relacional, e no sentido relacional tudo tem vida. Eu poderia colocar um montão de exemplos. Então, a noção de lixo não existe, porque não se pode produzir algo para ser dejeto. Tudo tem vida, mas como tudo tem vida, tampouco existe relação objeto-sujeito. Não há diferenciação entre objeto e sujeito. Todos os objetos são sujeitos e não estabelecem vínculo relacional com as coisas.
Nós, da Red de la Diversidad (3), trabalhamos a partir do campo cultural, mas o estético, a experiência estética não se torna mais um elemento ornamental. Uma coisa só tem valor se tem valor de utilidade. As culturas indígenas têm um nível de praticidade muito forte e, por isso, conquistaram territórios da economia, porque foram colocar suas experiências na disputa política do poder e na disputa econômica das relações de uma cidade.
Não é possível pensar o debate sobre o “bem viver”, senão articulamos alternativas e propostas a partir do existente em uma tripla dimensão simultânea. Isso foi uma das coisas que nós aprendemos a partir do debate sobre o “bem viver”: a necessidade das transformações desde a noção de “illa” e que só acontecem simultaneamente em muitos pontos, em muitos campos.
É preciso trabalhar nas políticas públicas, na disputa por dentro do estado, mas às vezes, a ideia da política pública já não tem que ser como a política pública que incentive algumas dimensões. Não. Nós defendemos que muito das disputas com e pelas políticas públicas deve ser que elas não bloqueiem o que acontece na vida das pessoas. Muitas vezes quando reivindicamos uma política pública, a institucionalidade de um Estado, o que o Estado toma das experiências populares termina matando sua vivacidade e as faz enfermas, fecha sua experiência vital. Então, quando na política temos que disputar, tem que ser uma política que não bloqueie a experiência social. E isso muda a maneira de entender as políticas públicas.
Segundo, não se pode trabalhar o “bem viver”, se não se trabalha sobre o jeito em que acontece o tecido associativo, o tecido comunitário. Muito do que acontece em nossas organizações ainda são processos profundamente coloniais, patriarcais, mercantilizadores da economia. Muito do nosso debate sobre os direitos terminam consolidando a estrutura econômica dominante do capitalismo.
E o terceiro elemento: tudo isso é insuficiente senão muda a construção das relações cotidianas. Então, aqui aparece uma terceira dimensão: não falamos desde a dimensão individual, porque não é possível falar no “bem viver” como um processo individual, é preciso falar disso conectado à estrutura das relações cotidianas, das convivências do dia a dia.
Hoje falamos lá na Bolívia, que o processo de transformação está calcado em dois pés. Um pé no debate colocado pela esquerda durante todo o século XX, que é o debate sobre a igualdade, o debate sobre a democratização, o debate sobre o acesso dos setores populares aos direitos e a riqueza – porque vivemos em sociedades altamente estratificadas e assimétricas nas relações e na distribuição da riqueza e do poder. Mas esse pé é insuficiente, senão colocamos o outro pé em um sentido de vida outro; em outro horizonte civilizatório perante àquela crise civilizatória que se falou hoje. Porque o cerne da crise civilizatória está numa incapacidade das sociedades modernas, desde o desenvolvimento e o crescimento, em responder adequadamente ao equilíbrio dessas múltiplas relações entre os homens, entre homens e mulheres, entre os seres humanos, entre seres humanos e a natureza, entre seres humanos e os ancestrais, a memória e a história, e entre os seres humanos e aquilo que podemos chamar de campo sagrado, espiritual.
Notas
[1] Pronuncia-se ilha.
[2] Usamos entrecruzadas para se aproximar da palavra abigarradas, originalmente usada pelo autor, na qual não encontramos sinônimo na língua portuguesa. Para o autor a palavra abigarradas traz um conceito chave, pois expressa um cenário que mostra simultaneamente os processos de singularização e de entrecruzamentos. São mesclas e brotos de algo novo e inédito. O abigarramiento não é, portanto, um todo mesclado, pois também há singularização e justaposição, novidades e também mesclas e entrecruzamentos e tudo em meio as relações de poder.
[3] A Red de la Diversidad surge em1995 como uma necessidade dos jovens da cidade do Alto para fazer-se escutar e participar das lutas contra o neoliberalismo reinante na Bolívia. Hoje, a Red tem um Centro para realizar suss diversas atividades políticas, culturais e sociais. Uma parte importante do Centro é a sua rádio, que reflete suas atividades. Há centros parecidos nas cidades de Sucre e Tarija, e uma rede de rádios que trocam programas de diferentes regiões. A Red de la Diversidad enfatiza uma reflexão sobre o mundo contemporâneo do projeto de civilização globalizado e dos modelos de desenvolvimento ocidentais modernos, para repensar a ação social e a transformação desde a diversidade e as cosmovisões indígenas, a participação juvenil e o campo cultural como lugar do político.
* Mario Rodríguez Ibáñez é fundador e integrante da equipe de coordenação de Wayna Tambo – Red dela Diversidad. Desenvolve militância, trabalhos e publicações em temas referentes à diversidade cultural, alternativas ao desenvolvimento, bem viver em contextos urbanos com aportes desde a educação popular, a comunicação e o tecido de cultura viva comunitária na Bolívia e em outros países do continente.
Texto editado a partir de comunicação oral apresentada na Oficina “O Bem Viver na cidade – perspectivas para o Brasil e o Cone Sul”, entre os dias 14 e 17 de junho de 2015, em São Paulo, organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo Brasil e Cone Sul.
Publicado em Caderno de debates 6: Territórios de Utopia