Em conversa sobre os desafios das esquerdas do nosso tempo, o sociólogo Klaus Meschkat defende que é preciso considerar a dimensão ecológica e o feminismo no debate sobre exploração, e afirma que não existe socialismo sem democracia.
Por Daniel Santini e Verena Glass
O sociólogo Klaus Meschkat*, 80 anos, talvez seja um dos principais especialistas em América Latina e seus movimentos de esquerda na Alemanha. Há mais de quarenta anos, Meschkat se dedica a estudar a região a partir dos vários processos revolucionários que a marcaram no último meio século, tendo vivenciado, como professor da Universidade de Concepción, no Chile, o golpe contra Salvador Allende em 1973. Atualmente faz parte do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao Desenvolvimento, criado em 2011 pela Fundação Rosa Luxemburgo no Equador. É a partir das reflexões deste coletivo, que reúne alguns dos mais proeminentes intelectuais da América do Sul, que tem buscado ler as configurações das esquerdas no Norte e no Sul do planeta, e a forma com que velhos e novos ideários influenciam esquerdas, socialistas e democratas.
O que aprender e como aplicar as teorias dos pensadores históricos da esquerda nos dias atuais? Meschkat é taxativo ao defender que o marxismo deve ser entendido como uma ferramenta para construir mudanças, e não uma receita pronta para uma nova forma de organização social. “O livro principal de Marx não se chama ‘como construir o socialismo’, mas sim ‘O Capital’. Seu mérito é analisar as forças destrutivas do capitalismo”, afirma. Ou seja, é importante ter em conta que Marx criou instrumentos, não ditou regras para o enfrentamento destas forças. Nesta entrevista, concedida na sede da Fundação Rosa Luxemburgo, em São Paulo, onde participou de um debate sobre socialismo e democracia, ele defende que é preciso incorporar temas como ecologia e feminismo ao se analisar desigualdades sociais, e aponta os limites do sistema atual, destacando que o capitalismo está perdendo atração entre os jovens e que as condições de vida na Europa são cada vez mais precárias.
Com a experiência de quem viveu na Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, ele associa a derrocada da antiga União Soviética ao modelo econômico adotado que, assim como nos países capitalistas, foi baseado no aumento constante do consumo e da exploração de recursos naturais. Também faz críticas à maneira como o chamado socialismo real se organizou e ao centralismo caracterizado pela falta de liberdade. “Como democrata eu acredito que uma sociedade só pode mudar quando existe informação e conhecimento. Não dá para com uma minoria que se diz esclarecida chegar ao poder com um partido monolítico, com todas suas receitas de como se toma o poder, e depois com uma minoria assim impor suas ideias. Esse não é o caminho para nenhum regime socialista, por isso nenhum sistema desse tipo eu chamaria socialista, me parece uma contradição”.
Confira abaixo a íntegra da conversa, dividida por temas para facilitar a leitura.
ECOSSOCIALISMO E MARXISMO
Muito se fala hoje em crise civilizatória, na crise do capitalismo, e muito tem se debatido sobre os rumos das esquerdas no nosso tempo. As configurações do capital transnacional se modificaram de forma drástica desde os tempos de Marx, e o que foi então já não é mais. Como, na sua avaliação, as leituras de Marx têm se renovado?
Creio que na esquerda há avanços nesse sentido. O livro principal de Marx não se chama “como construir o socialismo”, mas sim “O Capital”. Seu mérito é analisar as forças destrutivas do capitalismo. Ele identificou uma classe capaz de derrubar esse sistema, mas ainda tinha um pensamento muito unilateral em relação à classe trabalhadora industrial do seu tempo, considerando o contexto da Inglaterra. Tem essa carta famosa à Vera Zasulich [leia em espanhol ou inglês], uma populista que lhe perguntou o que fazer na Rússia, onde a classe trabalhadora industrial era muito pequena. Marx disse: “bom, a minha teoria foi para atuar em condições de capitalismo desenvolvido, como Inglaterra e demais países avançados. Em situações como a da Rússia, não é possível utilizá-la. A classe trabalhadora industrial é a força da revolução, mas pode ser que a comunidade russa seja o núcleo de uma nova ordem social em aliança com uma revolução no ocidente”. Ele já imaginava que poderia haver uma revolução vitoriosa dos trabalhadores em países avançados, combinada com outros tipos de revolução de gente igualmente explorada, se não na forma do proletariado industrial, na de camponeses que teriam que conquistar mais terras de latifundiários – o que aconteceu depois da Revolução Russa.
Há a possibilidade de não somente interpretar, mas desenvolver o marxismo considerando que Marx não poderia prever algumas tendências. Ele não poderia prever, por exemplo, que a classe de trabalhadores deixaria de ser maioria nos países mais avançados, que ela diminuiria em relação a outros setores da população. Hoje podemos ter outra ideia do que são os trabalhadores, entender que todos os que têm que vender sua força de trabalho são proletários, e a partir daí repensar todas a teoria das classes sociais. Isso é possível e nisso há avanços.
Como considerar, nestes novos tempos, o conceito de luta de classes? No Brasil, por exemplo, onde vivemos um boom de grandes projetos infraestruturais que muitas vezes geram enormes impactos sobre as comunidades nos territórios, há uma contraposição entre os que aplaudem a criação de postos de trabalho e os que têm suas vidas destruídas por estes processos. Qual seria a «classe trabalhadora» a ser defendida pelas esquerdas nestas situações?
Outro caso é o carvão do tipo lenhite (braunkohle), que é de baixa qualidade. Em duas regiões da Alemanha ele é extraído de minas a céu aberto, em Rheinland e Lausitz, na antiga Alemanha Oriental. Trata-se de algo muito destrutivo para o meio ambiente. Há plantas para gerar energia a partir desse tipo de carvão, e o argumento é que quando fecharmos as plantas nucleares precisaremos de outras fontes de energia. Apesar de podermos mostrar que esses são nocivos e não são tão necessários porque há outras alternativas para produção de energia, os sindicatos também têm essa divisão. Há interesses regionais e inclusive o partido Social Democrata diz que não se pode renunciar a esse tipo de carvão. Essas divisões acontecem não só aqui, mas também em países como Alemanha.
A partir do marxismo clássico, como analisar essa situação?
Na Alemanha temos um companheiro que contribuiu muito e segue contribuindo para a ampliação dessa visão marxista que inclui a dimensão ecológica, Elmar Altvater. Ele diz que Marx mostrou que o Capitalismo é um sistema que destrói não só os homens dentro do processo de produção, mas também a natureza. Essa ideia não está muito desenvolvida em Marx, mas é perfeitamente compatível com um pensamento marxista. É preciso incluir essa dimensão. Não há outro caminho que não o de convencer esses trabalhadores de que há alternativas. Quando eles dizem “necessitamos dos postos de trabalho”, é preciso mostrar que existem outras possibilidades. São tarefas novas, incluir essa dimensão ecológica, pouco a pouco, também no pensamento dos explorados. É algo difícil, mas não podemos seguir com esse argumento de que são necessários os postos do trabalho.
PROGRESSO E CONSUMO
Apesar da crescente consciência de que nos territórios há pessoas, estas ainda são vistas como obstáculos ao extrativismo de bens comuns que muitos países emergentes adotaram para sustentar seu modelo de desenvolvimento. Mas não se aplica a estas populações o conceito clássico de trabalho. Não têm patrão, não cabem greves, não há negociações por melhores condições. Ou há resistência, ou, quando muito, compensações na maior parte dos casos desvantajosas. Parte da esquerda critica, outra parte aceita esta situação; enquanto isso, os territórios sofrem mudanças irreversíveis
Acredita que um dos fatores para a derrocada da União Soviética é o fato de a mesma ter adotado o discurso de progresso baseado em consumo igual ao do ocidente, ainda que o sistema econômico fosse diferente?
Certamente que sim. Entre a população urbana, a aspiração das pessoas era a mesma que a das grandes cidades capitalistas, todos querendo o pequeno carro privado que dá a liberdade. Isso não só na União Soviética, mas em todos os países satélites, inclusive na Alemanha Oriental. Não havia um modo de vida distinto, mas sim o afã de imitar e inclusive de superar o capitalismo no consumo. Vários pensavam que o capitalismo é algo mal organizado, com suas crises periódicas, e que uma economia planificada seria superior. Kruschev prometeu que em cinco, dez anos, superaria os Estados Unidos em consumo. Ele tinha essa ideia e a crença exagerada na possibilidade de um planejamento centralizado. Fracassaram; esse planejamento a partir de um centro tem limites, não funciona. Em termos de destruição da natureza, é só pensar o que aconteceu com o Lago Araal. Ou que eles queriam redirecionar os rios da Sibéria que vão até o Mar do Norte para colocá-los em outra direção para irrigar e ampliar os cultivos de algodão e outros. Isso parou somente nos tempos de Gorbatchev. E isso é só um exemplo.
Isso não reflete um desejo intrínseco do ser humano de consumir, ter mais condições, melhorar a vida? Há os que se perguntam: se o capital atende o sonho das pessoas de ter mais, consumir mais, ter acesso à educação ou o que seja, então por que ser contra? O que a luta anticapitalista pode oferecer?
Existe uma contradição muito grande. O capitalismo permite sim um desenvolvimento acelerado das forças produtivas. A produtividade da indústria e do setor agrícola aumentou de forma espetacular; menos pessoas podem produzir mais, dá para produzir mais do que todos nós necessitamos. Haveria a possibilidade de redução de horas de trabalho, isso em nível mundial, não só nos países mais desenvolvidos. Mas o que vemos em vez disso é uma situação cada vez mais precarizada das pessoas. Mesmo em um país como a Alemanha, que é muito rico e tem uma esfera de consumo certa, as pessoas vivem com muita insegurança. E difícil conseguir uma vaga de trabalho, e nenhuma vaga é permanente. Ainda temos uma situação muito privilegiada até agora porque temos vantagens na exportação, mas isso não dá para manter.
SOCIALISMO, AUTONOMISMO E REVOLUÇÃO
Um dos mais importantes marxistas e especialistas em cidade, David Harvey, em conversa conosco se mostrou bastante cético quanto a uma eventual desaceleração da urbanização do mundo, ou até da desurbanização. Qual a sua opinião sobre o tema?
Creio que é muito importante desenvolver todos os conceitos sobre formas alternativas de conviver, mas o problema é: como chegar às pessoas? Na Alemanha, quando você diz: vamos lutar por outro tipo de sociedade, as pessoas dizem, bom, já sabemos como todos esses experimentos terminaram… A herança do chamado socialismo real ainda é muito forte. Sempre que se propõe algo, as pessoas falam, “ah, vocês querem voltar àquilo”. Quando é para introduzir esses novos conceitos, muitos temas envolvem primeiro a desconstrução. Por exemplo, ao tratar dos carros privados, é preciso trabalhar com restrições para poder promover o transporte público. Então primeiro as pessoas vão dizer: “querem tirar minha liberdade, era o que os comunistas queriam e agora vocês voltam com isso”. Então é difícil chegar às pessoas.
Os defensores da Alemanha Oriental falavam em socialismo real. Nós, como marxistas anti-autoritários, pensamos em outra coisa, em um marxismo que não seja um marxismo autoritário. Os da Alemanha Oriental diziam: “isso não existe em nenhuma parte, a URSS existe e esse é o socialismo real. Vocês são uns utopistas que pensam coisas estranhas e vão estragar nossa juventude”. Então com isso tudo a visão de uma sociedade alternativa é muito difícil. Há muitos exemplos, há teóricos que avançaram nos últimos anos, mas é difícil chegar na maioria das pessoas. Como democrata eu acredito que uma sociedade só pode mudar quando existe informação e conhecimento. Não dá para com uma minoria que se diz esclarecida, chegar ao poder com um partido monolítico, com todas suas receitas de como se toma o poder, e depois com uma minoria assim impor suas ideias. Esse não é o caminho para nenhum regime socialista, por isso nenhum sistema desse tipo eu chamaria socialista, me parece uma contradição.
Nos últimos anos, o autonomismo se fortaleceu como horizonte político entre vários grupos de juventude, como os Occupy, as diversas Primaveras, os indignados da Espanha, etc. São jovens que se dizem de esquerda, mas é algo distinto da esquerda revolucionária clássica. Na sua opinião, no que isso pode resultar?
Bom, isso é algo que está se ampliando. Se são movimentos contra a lógica do capital eu os chamaria de tendências dentro de uma esquerda ampla. Não tenho problema com isso. A esquerda não é necessariamente uma esquerda só marxista. O anarquismo, por exemplo, é parte de uma esquerda ampla. O problema é que muitas vezes não há nenhuma organização. Na Alemanha, por exemplo, eu fico muito impressionado porque milhares de jovens estão recebendo refugiados, mas não temos uma união para a mudança social que precisa ser feita em um nível político. Vivemos em uma democracia representativa e ninguém quer renunciar a isso; nem os progressistas da América Latina, que viveram e sabem o que é uma Ditadura.
Hoje todos estão conectados por meio de redes sociais com estruturas centralizadas, e, ao mesmo tempo, existem ferramentas de marketing e especialistas que trabalham com técnicas de psicologia, trabalhando com o medo. Vemos isso com muita intensidade durante as eleições, as campanhas políticas. Como disseminar informação e fomentar discussões políticas qualificada em um mundo onde se vê cada vez mais marketing e onde as pessoas buscam somente consumo, incluso de informações?
Há os que tratam de usar esses novos meios para uma política progressista, organizar muito mais rápido os movimentos de oposição. Temos vários desses na Alemanha, e eles conseguem preparar manifestações relativamente grandes. Eu os vejo com admiração, mas esse já não é o meu tempo. Eu sou um tipo que não tem nem celular, então não me meto a avaliar coisas que são interessantes, mas não me atrevo a dizer se utilizando os mesmos meios. Não sei se é possível pensar um Facebook socialista ou progressista. Se é possível fazer uma plataforma tipo Facebook para toda gente que quer dar voz a um empreendimento anticapitalista. Não sei se é possível, é um campo que para mim tem muitos enigmas. Vejo somente os perigos individuais quando olho o filho da minha sobrinha de 9 anos que não consigo tirar do Iphone. Para minha geração isso são coisas realmente novas.
Você crê que hoje há uma revolução a ser feita? O que é ser revolucionário hoje?
Minha experiência nisso foi nos anos 1960, chegamos a desenvolver um movimento de emancipação grande que, em algum momento, conseguiu mudar em um âmbito cultural e também político algo na Europa no pós-guerra. Creio que se trata sempre de captar pontos muito importantes que te permitam atuar. Por exemplo, no nosso caso, chegamos ao ponto de questionar o monopólio da grande imprensa em Berlim Ocidental com a proposta anticapitalista de expropriar Springer [grupo de comunicação que monopolizava as comunicações]. Esse momento captou muita gente. Eu acredito que não se trata nesse momento de conceitos globais, mas sim de encontrar pontos que alcancem muitos dos que existem, que pensam, que estão dispostos a se envolver. Isso existe, mas sempre são forças minoritárias. E é preciso trabalhar essas forças minoritárias que em algum momento virarão maioria – talvez não durante o meu tempo em vida. E aqui voltamos à luta contra a hidrelétrica [de Belo Monte]. Esses são pontos muito importantes para seguir trabalhando.
* O sociólogo alemão Klaus Meschkat foi companheiro de lutas do líder estudantil Rudi Dutschke. Acompanha os processos sociais na América Latina desde 1969. Viveu o golpe de 1973 no Chile como professor em Concepción, onde foi colega de Éder Sader. Meschkat é membro do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao Desenvolvimento da Fundação Rosa Luxemburgo.
Leia aqui sua palestra no seminário “Democracias em disputa”, em Bogotá, setembro de 2015, e aqui um texto sobre o debate sobre democracia e socialismo do qual participou no Brasil junto com Paul Singer.