“A esquerda que vem, se é que vem, é classista, antipatriarcal, mas profundamente ecológica"

Por Francisco Kovacic, Brecha/Instituto Humanitas Unisinos

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Maristella Svampa

Próxima de lançar seu novo livro, “Del cambio de época al fin de ciclo”, no qual analisa o que chama de pós-progressismo na América Latina, a socióloga argentina Maristella Svampa postula a necessidade de uma nova esquerda que incorpore a luta anticapitalista, o discurso antipatriarcal e, sobretudo, a agenda da crise socioambiental
Qual é sua visão sobre o atual governo de Macri, após 12 anos de kirchnerismo?
Tanto Argentina como Brasil vêm dando conta do final do ciclo progressista e uma passagem para governos mais conservadores. Nos dois países, dá a impressão que o progressismo deixou de ser uma língua franca com a qual todos nos entendíamos, para além das dissidências, e abrimos passagem a governos que introduzem uma nova linguagem política. Retorna um neoliberalismo que tem a ver com a maneira como se pensa a sociedade em alguns temas chave como a segurança, o mercado, a economia, os direitos sociais e as relações trabalhistas.
Nesse marco, também está o extrativismo. Há continuidades e rupturas com o governo anterior de Cristina Fernández. Por um lado, saímos desse populismo de alta intensidade que havia acarretado uma forte personalização do poder e entramos na era de um governo neoempresarial. Mas, o extrativismo foi uma característica de todos os governos latino-americanos, independente da cor política que tiveram. Isto está associado ao consenso das commodities, ao modelo de desenvolvimento no qual apostaram em razão das vantagens comparativas de exportar matérias-primas. Estamos assistindo ao cerceamento dos direitos sociais básicos em nome da flexibilização trabalhista e a atração de capitais. Isto é claro e não se pode negar.
Qual é seu conceito da herança recebida do kirchnerismo?
É difícil sintetizá-lo. Não podemos ser lineares. Primeiro, porque é um momento em que o kirchnerismo está no pelourinho. É algo que convém ao governo Macri, para continuar promovendo a polarização política e há uma tendência a reduzir o kirchnerismo a uma pura matriz de corrupção, e não é assim. Houve também uma linguagem de direitos expressada em numerosas medidas, desde os julgamentos aos genocidas, a renda universal por filho, a lei do matrimônio igualitário, a lei de identidade de gênero e os direitos aos aposentados. Houve medidas concretas e uma linguagem de direitos com certas políticas de inclusão que fizeram parte do kirchnerismo. Mas, por outro lado, o kirchnerismo propiciou toda uma agenda ligada ao avanço do extrativismo e a precarização trabalhista. Como os populismos e os transformismos, combinou políticas de inclusão social com um pacto de governabilidade com o grande capital.
É possível alguém pensar que não havia saída na Argentina, após o incêndio de 2001.
Isso seria reduzir o cenário político que se deu com a crise. A Argentina se revelou como um grande laboratório social onde emergiram novas mobilizações sociais que buscaram reconstruir o tecido social do trabalho. As assembleias de bairro, o movimento piqueteiro, as fábricas recuperadas pelos trabalhadores e os inumeráveis coletivos culturais buscavam recompor o vínculo político desde baixo, mas resistindo de maneira muito radical as formas de representação política. Em fins de 2002, há uma fragilização desse campo por diferentes razões: pela falta de conexão entre o social e o político, mas também pela grande repressão da Ponte Pueyrredón, em junho de 2002. Foi um golpe muito forte às forças sociais mobilizadas e que pôs em relevo a grande assimetria existente entre os movimentos sociais e o poder do Estado. E veio o peronismo pela mão de Néstor Kirchner. O peronismo se caracteriza historicamente por ter uma grande produtividade política.
Referia-me a isto: Kirchner captou uma mensagem, ainda que com o tempo acabou aliado ao grande capital.
Houve três acertos de Néstor Kirchner no início. Por um lado, captou a mensagem das organizações sociais e a cristalizou na política de direitos. É nesse momento que se consolida o consenso nas forças sociais mobilizadas de que era necessário punir os responsáveis pelos crimes contra a humanidade. Não é um consenso que Kirchner constrói. Em segundo lugar, emerge em um período particular, o aumento no preço das commodities e o surgimento de um espaço regional com um discurso latino-americanista inovador. Kirchner vê a possibilidade de se inserir como uma força nova nesse marco. E o terceiro é que o kirchnerismo, como populismo, combina as políticas sociais de abertura, de inclusão, do discurso latino-americanista, ao pacto com o grande capital, em uma época que a transnacionalização da economia se torna cada vez maior e mais presente. Na época de Kirchner, houve maior concentração econômica que no menemismo.
Podemos incluir o kirchnerismo entre o progressismo latino-americano?
É claro, desde que se faça uma leitura mais refinada do que foi o progressismo em nível latino-americano. Em “Del cambio de época al fin de ciclo”, reúno vários de meus artigos sobre América Latina relacionados aos temas do progressismo, extrativismo e movimentos sociais. Ali, procuro refletir sobre estas dimensões do progressismo latino-americano, que é necessário ler em termos de dinâmicas recursivas e históricas.
Trata-se de um ciclo que se inaugura no ano 2000, talvez poderíamos dizer 1999, com a ascensão de Hugo Chávez. Eu tenho a tendência a identificá-lo com a inflexão que supôs a guerra da água na Bolívia, uma ação importante porque significou a expulsão de uma grande multinacional e o início de um ciclo ascendente de luta. E progressivamente vai se fechando em 2016, com a guinada a governos conservadores na Argentina e Brasil, e também com a ruína política na Venezuela.
Há pessoas que tendem a associar o progressismo à esquerda. Na realidade, em termos etimológicos, aponta à ideia de uma força de mudança que acredita no progresso, no avanço das forças sociais. É uma designação muito ampla e genérica que congregou diferentes experiências políticas. Por isso, falo de uma língua franca, porque foi uma espécie de língua comum para experiências diferentes. Inicialmente, muitos de nós pensamos que era a expressão das novas esquerdas, que também poderiam fazer convergir e nuclear diferentes tradições da esquerda: a populista, a classista, a comunitária indígena e a autonomista, que são as mais importantes na América Latina. No entanto, o que vimos foi o desacoplamento entre esquerdas e progressismo.
O kirchnerismo, então, fez o conceito de progressismo explodir?
Não diria que o fez explodir. O kirchnerismo produz o desacoplamento desse progressismo e as expectativas de esquerda que abrigava no início do ciclo. Por isso, é necessário lê-lo na perspectiva histórica.
Podemos pegar a Bolívia como um exemplo de mudança sustentável frente a uma Venezuela que está com sérios problemas, um Chile que nunca ingressou nesse eixo progressista, Argentina e Brasil que já saíram para a direita, e Uruguai com um Tabaré Vázquez mais à direita?
Na Bolívia, reconheço grandes avanços em direitos, mas também há grandes problemas. Por causa da mobilização, houve partilha de terras, políticas sociais, e sobretudo o simbólico que significa combater a discriminação étnica e colocar os indígenas no lugar da dignidade. Isso é uma das maiores contribuições do governo de Evo Morales e que irá marcar um antes e um depois.
Contudo, há uma imagem muito romantizada do governo boliviano como governo indígena. A partir de 2008, houve fortes conflitos com grandes organizações indígenas rurais, várias delas fizeram parte do Pacto de Unidade. Não se pode esquecer que esse pacto foi o projeto político indígena que oito organizações indígenas rurais apresentaram na Assembleia Constituinte e que foram a base da criação do Estado Plurinacional e, sobretudo, das autonomias. O que se consolidou na Bolívia, como bem sustenta Luis Tapia, é um Estado Plurinacional frágil, onde as autonomias não ocupam nenhum lugar na agenda. E onde, distante da linguagem ambientalista e pelos “direitos da Pachamama”, consolidou-se o extrativismo, que também não vem somente da mão da expansão da fronteira energética, mas do agronegócio.
Houve algum governo da região que conseguiu evitar o pacto com o grande capital?
Estes governos progressistas buscaram estabilizar uma relação com o grande capital. Também houve enfrentamentos pelas expropriações no caso de Morales, com os hidrocarbonetos. Houve políticas de estatização que se confrontaram com os grandes capitais. Mas, o extrativismo implica um pacto. De fato, há um grande giro extrativista na Bolívia, onde se quer construir grandes represas hidrelétricas. Chávez também enfrentou os setores petroleiros e precisou encarar um golpe de Estado. Nicolás Maduro assinou, agora, um decreto para criar na zona do arco mineiro e petroleiro um polo sem estudos de impacto ambiental e onde o direito à consulta dos povos originários não existe.
Não há como lutar contra o grande capital, então. Nem na América Latina, nem na Europa, onde Podemos, na Espanha, e Syriza, na Grécia, se mostraram como boas bandeiras de rebeldia frente ao capital, mas insuficientes para gerar propostas aplicáveis a políticas de Estado alternativas…
No caso do Podemos, não sabemos porque ainda não chegou ao governo. É lamentável no caso do Syriza, porque se conjecturava que tinha um plano B para implementar em relação à União Europeia.
Tudo isto se dá em um contexto geopolítico que mudou muito. Na Europa, houve um aprofundamento das políticas de direita com xenofobia e nacionalismo. No ano 2000, quando foi criada a moeda única, os ensaios que líamos falavam de uma expansão da fronteira de direitos. Dezessete anos depois, é uma Europa recuada sobre si mesma, em crise econômica, níveis de exclusão importantes para diferentes níveis sociais e uma crise humanitária maior, rejeitando os refugiados. A verdade é que resta pouco da Europa utópica com direitos. Muito mais agora, após o Brexit e a emergência de Donald Trump. Os partidos social-democratas não têm resposta para isso. Fazem parte do establishment, como foi o Partido Democrata com Hillary Clinton nos Estados Unidos. Então, temos a emergência dessas direitas populistas, xenófobas, racistas que prometem soluções mágicas a problemas tão complexos.
Essa centro-esquerda faz parte do establishment?
Nota-se com clareza na França, onde o Partido Socialista gerou uma elite política comparável à direita. São setores que se enriqueceram, com um alto nível cultural, que desconhecem os problemas vividos na rua, com exclusão especialmente para os filhos de imigrantes africanos e do Oriente.
Por que não pensar em construir uma esquerda ao invés de reconstruir a centro-esquerda? A palavra esquerda gera medo e é preferível falar de centro-esquerda para não assustar os eleitores?
Eu falo de esquerda. Podemos pensar em uma centro-esquerda que olha à esquerda, que não é o caso do ocorrido nos últimos anos. Na Argentina, a explosão do campo da centro-esquerda foi aproveitada pelo kirchnerismo.
É preciso repensar as esquerdas em um contexto pós-progressista, que implica tratar de conjugar as diferentes tradições. Deve ser concebida como uma esquerda anticapitalista e trabalhista, mas, sobretudo, ecológica. Caso não incorpore a crise socioambiental, que possui alcance civilizatório, não há possibilidade de recomposição alguma desse espaço político e intelectual chamado esquerda. A esquerda que vem, se é que vem, é classista, antipatriarcal, mas profundamente ecológica.
Com Trump, Macri, o brasileiro Michel Temer e a ‘direitização’ europeia, qual é o caminho para uma alternativa de esquerda ou progressista?
É necessário enxergar as coisas sem esse ressentimento que habita aqueles que ficaram fora do poder. Talvez o PT brasileiro tenha mais direito a se queixar disso. Não estou certa de que possamos dialogar amigavelmente com aqueles setores que aderiram tão acriticamente ao progressismo na década passada, mas, no entanto, é necessário. A dificuldade está em que essas feridas estão abertas. Isto que ocorreu na Argentina também ocorreu em toda a região. Na Bolívia, tenho muitos amigos que fizeram parte do governo de Evo Morales, em seu início, e hoje estão fora, ao ponto de ser considerados inimigos de Evo.
Na Bolívia, não há alternativa para Evo Morales?
Sim, existe e, além do mais, está construída. O que acontece é que eles trabalham com a ideia de terra arrasada. Não permitem o surgimento de novas lideranças. Os populismos não podem construir sucessão porque estão baseados na concentração de poder em um líder. Evo acredita que não pode ser substituído por ninguém. O que também fez é expropriar essa energia social fabulosa que havia na Bolívia, disseminada em diferentes expressões sociais, e que agora só parece estar concentrada em sua pessoa. Isso é o que também fizeram os progressismos e em algum ponto é imperdoável: expropriaram a energia social que ficou concentrada nessas lideranças tão fortemente personalizadas.
Na Bolívia, havia duas tendências. Uma era personalizar o poder em Evo Morales e a outra democratizar esse poder e buscar formas coletivas de expressão. Esta última perdeu espaço em meio a um processo de polarização com a guerra de baixa intensidade que houve com as oligarquias do Oriente. É preciso compreender o processo com as capacidades que retomaram os estados e esta identificação entre as lideranças personalistas e o Estado. O populismo é fetichização do Estado na pessoa do presidente. Esta ideia de que as conquistas só podem ser preservadas caso se conserve a liderança personalista, é uma ideia muito negativa na América Latina. Significa uma grande desconfiança nas dinâmicas coletivas de ação, que é o que devemos recuperar. Os movimentos estão muito fragmentados pelo momento, mas são a base para pensar uma nova alternativa. É um tempo perturbador, não somente em nível regional, pela guinada à direita que supõe, mas em nível global, por gerar a ascensão das direitas xenófobas e racistas como as representadas por Donald Trump.
Foto: Maristella Svampa/Facebook