Mais Marx!

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Por Ruy Braga*, Blog da Boitempo
Por dever de ofício, acumulei mais de uma década de experiência lecionando o Livro I de O capital para os estudantes do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Ao longo dos anos, a dinâmica em sala de aula repetia-se: por um lado, o desafio de simplificar os conceitos e processos históricos contidos no texto foi se tornando menos atraente, afinal as dúvidas dos estudantes eram mais ou menos as mesmas e as respostas em sala foram se tornando protocolares; por outro, cada resposta automática exigia uma digressão detida a respeito do que havia sido “ocultado” pela simplificação didática.
Talvez o melhor exemplo disso seja a definição de valor como determinada quantidade de tempo de trabalho “abstrato”. Normalmente, os estudantes sentem dificuldade em compreender essa dimensão “abstrata” do trabalho, afinal, somos capazes de observar apenas as formas concretas de sua existência.** De fato, a dificuldade existe, pois, segundo Marx, tanto a base orgânica quanto a natureza social do trabalho são igualmente necessárias para a determinação do valor.
Além disso, a abstração do trabalho relaciona-se intimamente com a espoliação do trabalhador, ou seja, com a atribuição de uma forma útil, de mercadoria, à sua capacidade de transformar a natureza; a essa mercadoria é dado o nome de força de trabalho. Isso tudo está condensado em poucas páginas. Naturalmente, meus estudantes costumam ficar confusos. E o quadro torna-se ainda mais exótico quando eu introduzo a necessidade de o tempo de trabalho ser despendido em sua forma “socialmente necessária”, sendo essa dimensão o resultado da totalização da concorrência entre os diferentes capitais.
Aqui, é possível perceber aquela circularidade característica do raciocínio de Marx. Aparentemente, isso pode ser interpretado como uma maneira atabalhoada de expor uma teoria. No entanto, trata-se de uma estratégia perfeitamente compatível com o procedimento metodológico segundo o qual o caminho que leva ao conhecimento é parte do próprio processo do conhecimento. Marx estava fundamentalmente preocupado em criar uma explicação globalizante do desenvolvimento do modo de produção capitalista. E, para tanto, a simples enumeração de características da sociedade capitalista do século XIX, o “capitalismo de Manchester”, por exemplo, seria insuficiente.
Assim, se quisermos interpretar as formas mais elementares das relações sociais, como a troca do tempo de trabalho por um salário, por exemplo, necessitamos pressupor a existência de suas formas historicamente mais complexas, no caso, a concorrência entre os diferentes capitais. Esse exemplo serve apenas para ilustrar a dificuldade didática inerente ao ensino de O capital.
Como indiquei há pouco, aquilo que poderia ser considerado um importante de obstáculo ao progresso da leitura – a ponto de levar Louis Althusser a sugerir aos leitores da obra-prima de Marx pular as primeiras seções do livro, indo direto para os capítulos históricos –, para a maioria de meus estudantes, no entanto, revelou-se um impulso para chegar ao fim do Livro I.
Minha melhor aposta é que os jovens sentem-se atraídos pelo “mistério” que envolve o “crime” definidor da sociedade capitalista, isto é, a transformação das relações sociais e das coisas em mercadorias. Eles intuem que há algo realmente muito enigmático na forma aparentemente natural de fazer com que os indivíduos relacionem-se entre si através da alienação dos objetos de seus diferentes trabalhos. Um enigma que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria”.
Os estudantes percebem que a “ficção” da economia política, aquela velha cantilena segundo a qual, em tempos imemoriais, éramos todos iguais, mas, com o passar do tempo, alguns trabalharam mais arduamente do que outros, sendo premiados com o acúmulo do dinheiro que acabou se transformando em capital, simplesmente não explica as desigualdades sociais que cotidianamente os interpelam.

antonellaA pesquisadora Antonella Muzzupappa estará no Brasil para discutir a importância da leitura d´O capital, de Karl Marx. Muzzupappa é uma das autoras do livro Mais Marx: material de apoio à leitura d’ O capital, Livro 1, publicado em 2016 pela Boitempo com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
A pesquisadora participará em um debate sobre a obra de Karl Marx na FFLCH-USP. O evento será na terça-feira, dia 21 de março, a partir das 18h, e contará com a presença de Jorge Grespan e a mediação de Ruy Braga.

E, por maior que seja a dificuldade de avançar na leitura dos primeiros capítulos do livro, o esforço compensa. O texto logo se transforma em uma leitura dinâmica e muito atraente, uma espécie de romance noir com um final surpreendente no qual aqueles que espoliaram, pilharam, mataram, sequestraram e escravizaram em nome da criação do mercado mundial terminarão, finalmente, expropriados.
Essa fascinante estratégia expositiva, contudo, não se encontra a serviço de uma teleologia, isto é, de uma interpretação na qual o fim é conhecido de antemão e, portanto, não há necessidade de uma autêntica investigação científica, sobrando espaço apenas para o dogmatismo de natureza religiosa. Nada mais equivocado. O fim do livro, ou seja, a revolução socialista, configura uma meta a ser alcançada pela humanidade se esta deseja superar a insanidade contida no movimento próprio do capital: acumular por acumular.
Trata-se antes de uma construção política, e não de uma promessa divina. Como tende a se tornar mais claro a partir da leitura dos prefácios às diferentes edições de O capital, o principal interesse de Marx na empreitada de reconstrução teórica do movimento característico do modo de produção capitalista consistia exatamente em conhecer para superar as relações sociais de exploração e de dominação que (des)estruturam a sociedade contemporânea.
Essa dimensão da leitura costuma nutrir o interesse de meus estudantes pelo livro ao adicionar uma dimensão suplementar e igualmente importante para a reflexão: a luta política. Ao longo dos anos, percebi que a renovação do interesse pelos escritos de Marx liga-se diretamente ao desejo das gerações mais jovens de compreender suas próprias experiências de vida, suas próprias angústias existenciais. Esta é a chave da contemporaneidade de O capital: auxiliar-nos a compreender as contradições atuais do capitalismo globalizado, as forças sociais que se escondem por trás do trabalho precário, do desemprego, da crise.
Isso só é possível porque Marx não se dedicou a descrever laboriosamente o capitalismo do século XIX, mas a construir uma bússola teórica para que as gerações posteriores fossem capazes de investigar as transformações do próprio capitalismo em seu devir. Ao contrário do que quiseram fazer crer muitos ideólogos dos regimes socialistas burocráticos, o conteúdo d’O capital não configura um tratado das leis que regem o funcionamento da sociedade capitalista.
Trata-se de uma teoria crítica e aberta que desafia as certezas liberais ao assumir seus pressupostos, como a lei da troca de equivalentes, por exemplo, para demonstrar como a igualdade transforma-se em desigualdade, a liberdade em opressão, a prosperidade em crise. Aliás, ler O capital hoje em dia é uma tarefa decisiva para aqueles que desejam compreender a crise atual do capitalismo globalizado. Mesmo os porta-vozes dos mercados financeiros, como a revista The Economist, tiveram de admitir essa realidade.
Ou seja, na condição de obra científica, crítica e revolucionária, O capital superou seu tempo. Transformou-se em uma inesgotável fonte de imaginação sociológica e política. Por isso, mesmo com todas as dificuldades que o texto apresenta, ao longo dos anos, a maior parte de meus estudantes aceitou o desafio de ler o Livro I nos próprios termos de Marx a fim de solucionar o mistério do capital.
Na condição de quem acumulou alguma experiência nessa seara, posso dizer que sempre senti falta de um apoio didático de qualidade capaz de apresentar de forma clara a obra, destacando o apuro expositivo do objeto tão duramente alcançado por Marx. Evidentemente, existem muitos manuais que se propõem a balizar uma leitura introdutória d’O capital, além de livros especializados em inúmeros tópicos abordados por Marx ao longo da obra. No entanto, conheço pouquíssimos textos dedicados especificamente ao apoio de grupos de estudos d’O capital. Por isso, foi com muita alegria que recebi a notícia da publicação, pela Boitempo e pela Fundação Rosa Luxemburgo, de Mais Marx: material de apoio à leitura d’O Capital (Livro I). Trata-se de uma iniciativa muito bem-vinda, considerando o rápido crescimento do interesse, sobretudo entre os jovens, pela obra de Marx. E ler a obra coletivamente, partindo de pressupostos não dogmáticos, é ainda mais relevante, pois apenas assim a mensagem original do autor pode ser plenamente apreendida.
É parcialmente correto afirmar que, após um século e meio de sua publicação original, não há mais uma leitura “desinteressada” possível desse livro. Como costumo afirmar nas minhas primeiras aulas, ler Marx em seus próprios termos não é uma tarefa “ingênua”, mas pode ser empreendida sem preconceitos, ou seja, a partir dos problemas levantados e das soluções propostas por ele mesmo. Talvez por isso, considero que as formas mais produtivas de abordar a obra são exatamente aquelas que buscam superar tanto o dogmatismo quanto o teleologismo que por mais de um século predominaram nas interpretações d’O capital, em especial entre aqueles que se alinharam às duas correntes predominantes do marxismo no século passado, isto é, o reformismo e o stalinismo.
Temperados por esse importante ajuste de contas com o passado, Valeria Bruschi, Antonella Muzzupappa, Sabine Nuss, Anne Steckner e Ingo Stützle alcançaram um feito verdadeiramente notável neste volume: restaurar o sentido íntimo do projeto de emancipação social advogado por Marx a partir de uma interpretação ao mesmo tempo didática, dialética e aberta da obra. Dentro e fora das universidades, os jovens encontrarão nesta coleção de slides em PowerPoint, acompanhada por preciosos comentários, um material imprescindível para sua autoeducação teórica e política.
** Afirmar que a leitura do Livro I é difícil é parcialmente correto. De fato, os primeiros três capítulos do livro são um tanto ou quanto áridos para aqueles que não possuem conhecimento prévio de economia política. Isso não quer dizer que não sejam inteligíveis, ainda que de forma parcial, pois a demonstração da capacidade explicativa dos conceitos de mercadoria, valor, dinheiro etc. apenas será revelada plenamente quando a visão do sentido global do movimento do capital completar-se no Livro III.
 
*Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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