Debate na Fundação Rosa Luxemburgo reúne pesquisadorxs para discutir caminhos para se contrapor ao avanço conservador
Por Jorge Pereira Filho
De que maneira resistir à atual ofensiva conservadora? Como foram produzidos os impasses vividos hoje pelos setores progressistas? Em meio ao conturbado cenário das reformas propostas pelo presidente Michel Temer, um debate na Fundação Rosa Luxemburgo reuniu autores de dois livros recentes que reúnem tentativas de respostas a essas questões. Trata-se de As contradições do lulismo (Boitempo, 2016), organizado por André Singer e Isabel Loureiro, e Além do PT (Elefante, 2017), de Fabio Barbosa dos Santos. Além deles, também esteve presente a socióloga Cibele Rizek, professora da USP em São Carlos (SP), autora de um ensaio publicado no primeiro livro.
Os pesquisadores tiveram um acalorado debate na noite de 11 de abril que não se limitou a reproduzir as teses discutidas nas duas obras (ouça a íntegra do debate). Divergentes em muitas de suas conclusões, as reflexões explicitaram parte das desconexões verificadas na própria esquerda. Porém, em vez de atenuadas ou varridas do debate, essas diferenças encontraram uma rara oportunidade de serem discutidas fraternalmente – termo ao qual os interlocutores lançaram mão por diversas ocasiões para expor suas contrariedades.
A professora de Filosofia Isabel Loureiro abriu o debate remetendo os impasses atuais às questões clássicas da esquerda – talvez sintetizadas grosseiramente na fórmula “reforma ou revolução”. Porém, para Loureiro, estudiosa de Rosa Luxemburgo, hoje há uma complexidade maior, uma vez que o neoliberalismo seja tem se tornado uma “forma de vida”, abarca assim um largo espectro da vida, da esfera da produção material à esfera da própria subjetividade. “A ideia do indivíduo empreendedor atravessa a sociedade de cabo a rabo, esse indivíduo que é individualista, competitivo, que defende a meritocracia.”
Dada essa realidade, segundo ela, as esquerdas pragmáticas teriam assumido que, a margem de manobra seria mínima diante do poder do capital e todo o esforço deveria estar centrado nas eleições. E se a vitória chegar, o desafio seria administrar a máquina, fazendo breves acenos às camadas subalternas, no limite do possível. “A encalacrada é gigantesca e para sair dela é preciso conversar, discutir de maneira franca, para termos um diagnóstico convincente daquele mal que nos corrói como esquerda”, pontuou.
Submissão ativa
Fabio Barbosa do Santos, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo em Osasco, procurou apresentar algumas teses para fundamentar seu diagnóstico. Na sua análise, o PT tem uma centralidade inescapável. “Embora não seja o único responsável, o PT é o corresponsável pela derrota que vivemos hoje por ter mantido intocado o poder das corporações de comunicação, por ter servido à Lei de Responsabilidade Fiscal, por ter praticado uma combinação de repressão e cooptação dos movimentos populares e ter feito da política parlamentar sua base, e não povo ou a esquerda.”
Nessa perspectiva, para ele, o golpe sofrido por Dilma Rousseff não significaria uma mudança no sentido da história brasileira, mas sim uma aceleração no ritmo e no tempo da política prevalente, uma vez que não existia uma disputa substantiva de projeto. “Não tenho dúvidas de que o governo Temer é mais destrutivo do que o anterior, mas não há uma inflexão na direção, o congelamento dos gastos públicos foi uma radicalização do ajuste estrutural praticado pelos governos petistas.”
O golpe teria ocorrido por conta do esvaziamento da funcionalidade política exercida pelo PT, que estaria consolidada por sua vez no “modo lulista de regulação do conflito social”, associando vultosos ganhos para os de cima e modestos ganhos para os de baixo – suficientes para manter um apaziguamento social. Essa fórmula teria submergido diante da crise econômico, a queda do preço das commodities, e dos escândalos políticos.
Fabio avalia que, apesar da importância histórica do PT, esse instrumento perdeu sua razão de ser a partir do momento que teria se convertido no “braço esquerdo do partido da ordem”. Esse aspecto é central na análise de Fabio, uma vez que tal conclusão inviabiliza a aposta na restauração da ordem petista como um horizonte de futuro. “Os críticos dessa ordem precisam dissecá-la impiedosamente, tirando as lições da história”, recomenda.
Para ele, a experiência petista ilustra, como nenhuma outra na história brasileira, os limites de uma reforma dentro da ordem, conciliando avanços para o trabalho até o ponto que não antagonizassem com o capital – o mesmo em relação a autonomia em relação aos Estados Unidos. “É necessário restituir a densidade histórica da esquerda latino-americana, identificada com a superação da desigualdade e da dependência, mas sequestrada na atualidade por diversas expressões de reformismo conservador.”
Sair da bolha
No debate realizado na Fundação, coube ao professor de Ciência Política da USP, André Singer, fazer o contraponto à perspectiva de Fabio. Principal formulador do conceito “lulismo” para explicar o fenômeno vivido durante parte dos governos petistas, o pesquisador afirmou que, embora compartilhasse com parte das críticas feitas ao PT, o problema é que tal discurso não consegue vencer as barreiras dos segmentos mais politizados, resignando-se a uma classe média radicalizada, com exceções muito circunscritas. “A questão do PT é que ficar no PT é ter uma possibilidade de diálogo com esses setores. Existe um preço para isso, claro, o partido não é o mesmo da fundação, mudou muito, em muitos sentidos. Transformou-se de um partido de classe em popular, de um partido de núcleo em um partido de máquina, de um partido radical em um partido relativamente moderado.”
Singer lembrou que tal instrumento partidário nasceu de uma conjunção ímpar na história brasileira, que agrupa em uma mesma legenda uma visão teórica radical do processo político do populismo pré-1964 e os segmentos mais expressivos do movimento sindical e popular. “A medida que o PT foi se tornando uma opção majoritária foi deixando de ser um partido de classe, guardadas as diferenças é um pouco o que aconteceu com os partidos socialistas europeus.”
De todo modo, para Singer, a agremiação, apesar do resultado das últimas eleições, mantém uma capacidade ainda de se vincular ao movimento real dos trabalhadores e às camadas populares. “O PT continua tendo força significativa no movimento sindical, que continua sendo importante num país como o Brasil”, ressaltou, acrescentando que não adianta “falando conosco mesmo não nos ajuda, há uma espécie de autossatisfação nisso que não me atrai”.
Outro aspecto que Singer destacou é a necessidade de se reconhecer os avanços verificados durante os governos petistas. “O lulismo foi bastante significativo, muita gente melhorou de vida e isso tem consequências políticas. Faz parte do nosso programa, o qual é claro vai bem mais longe.”
Cibele Rizek, professora da USP em São Carlos, apresentou uma importante consideração entre esses dois polos do debate. Para ela, é inequívoco reconhecer que a novidade do lulismo foi o combate à pobreza, embora ressaltando que isso foi feito de maneira “torta e apassivadora”. A pesquisadora criticou as consequências para a cidade do processo de financeirização das políticas sociais, o que acabou transformando de certa maneira a pobreza em um nicho de negócio. “O limite entre política social e mercado é muito poroso.”
Rizek criticou o programa Minha Casa Minha Vida que provocou um deslocamento de movimentos urbanos a tal ponto que os tornou “operadores do programa”. Não se discute a questão da propriedade, não se distribui renda, não se trata de uma política habitacional. Com relação a emergência dessa nova subjetividade, Rizek comenta: “Esse encolhimento das possibilidades de escolha está posto para a esquerda, mas sobretudo para a população. O que sobra a partir desse encolhimento e do ideário neoliberal do empreendedorismo de si é a elisão brutal da experiência coletiva”. A esse dilema, Fabio respondeu um pouco adiante: “Se a gente parte da premissa de que não há espaço para reforma no capitalismo dependente, você tem de criar espaço a consciência contrária, o desejo é da ruptura em vez de andar para trás.”
Novos cenários
Com relação às possibilidades de rearticulação de um campo que aponte para a superação desse contexto conservador, os participantes do debate apontaram diversas possibilidades. Para Fabio Barbosa, o Brasil é uma panela de pressão e é preciso superar o paradigma conciliatório consagrado pelo lulismo. Em uma crítica à perspectiva de Singer, o autor de Além do PT afirmou: “Para qualquer lado que a gente olha, vemos uma degradação extraordinária dos valores políticos e sociais depois de 13 anos de governos petistas. Essas gestões não só aceitaram o horizonte prevalente, como desmobilizaram o campo popular”. Para ele, o país é uma panela de pressão, a coisa vai estourar e, embora o PT seja a política do mal menor, a esquerda precisa recuperar sua capacidade de propor novos horizontes.
André Singer, por sua vez, pontuou que se embora o PT não corresponde a um programa mais avançado, ou mesmo não faz jus ao que diz defender, as alternativas são frágeis. “Para mim é importante que o PSOL exista, para a esquerda brasileira. Agora, a questão é que o PSOL, com toda a franqueza, não interfere na política brasileira.”
O cientista político lamentou que é preciso debater também qual tem sido a experiência desses setores que construíram legendas com programas mais radicalizados, pois hoje “as opções de esquerda são minoritárias”. Singer disse que nos debates internos do PT defende a necessidade de aliança com o PSOL, pois isso poderia representar uma sinalização simbólica. Porém, ele afirma que a ideia não tem prosperado até o momento. “Dos dois lados não há disposição. Saímos de um golpe parlamentar, falando em unidade, e eu estava consciente de que não seria fácil. É um assunto para conversarmos. É importante porque essa questão pode ser chave para o que pode a situação atual. Estamos diante de tamanho retrocesso que se não fizermos algo muito amplo não há como segurar”.
Possivelmente, em meio a esse antagonismo, um campo social segue desconectado de ambos os discursos. É o que disse Cibele Rizek, ao pontuar que “entre os discursos dos direitos e o que se vive na periferia, há um vazio impossível de ser preenchido”. A pesquisadora citou que, ao mesmo tempo que se garantiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, as chacinas cotidianas continham a acontecer nas periferias. “Aparentemente somos uma democracia. Somos mesmo? Só se rebaixarmos muito a noção de democracia.” Para ela, há ainda uma emergência de novos movimentos que apontam para novas maneiras de se fazer política. “Ao fim, acho que a gente tem de fazer o luto e pensar para frente. A questão é como? Explodiu uma miríade de ativismos, é uma outra maneira de pensar a ação política, e não podemos pensar esse processo da maneira que pensamos antes, é uma outra conformação. A política não morreu, mas me inquieta saber como”. E talvez das mobilizações indígenas em Brasília e da experiência da Greve Geral de 28 de abril outras lições possam ser extraídas para indicar por qual caminho alternativas vão emergir.
Fotos: Verena Glass