Uma Comissão da Verdade para a Era Vargas?

Debate no Museu da Imigração resgata histórias graves de perseguições a estrangeiros, incluindo as de espanhóis republicanos mandados para áreas da Espanha controladas por Franco durante a Guerra Civil, e de alemães entregues para a os nazistas. Pesquisadora defende criação de uma Comissão da Verdade para apurar violações de direitos humanos no período

Daniel Santini, Ismara Izepe de Souza, Rodrigo Valente e Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro
Daniel Santini, Ismara Izepe de Souza, rodrigo Valente e Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro

Por Marina Pinho
Expulsões e detenções de migrantes durante a Era Vargas (1930-1945) estão entre os temas discutidos no debate “Perseguidos por serem estrangeiros”, realizado em 20 de fevereiro, no Museu da Imigração, em São Paulo. O evento foi pensado a partir da publicação “De volta ao passado?” dos jornalistas Juliana Sada e Rodrigo Valente. O trabalho é um levantamento das expulsões ocorridas durante a Era Vargas e foi publicado em dezembro de 2017 pela Fundação Rosa Luxemburgo.
O debate foi organizado em parceria com o Museu da Imigração do Estado de São Paulo e contou com a presença de Rodrigo Valente, autor da publicação e mestre em Arqueologia Pré-Histórica pela Universidade Autônoma de Barcelona e também de duas pesquisadoras entrevistadas para a publicação, Ismara Izepe de Souza (Unifesp) e Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro (UFABC), ambas doutoras em História Social pela Universidade de São Paulo e estudiosas do tema. A discussão foi moderada por Daniel Santini, da Fundação Rosa Luxemburgo. Durante o encontro, houve a defesa da criação de uma Comissão da Verdade para o período, tão graves e tantas as violações ocorridas.
Valente relata que foram 671 casos documentados de estrangeiros perseguidos e expulsos durante o governo de Getúlio Vargas. Naquela época a população brasileira era de aproximadamente 40 milhões e a expulsão de um grupo tão grande representava uma mensagem clara para todos os estrangeiros: que não se envolvessem em movimentos políticos. “Essas expulsões faziam parte de um projeto étnico-politico do governo da época, que já existia antes do Vargas”, explica o autor. Com as expulsões o governo escolhia quais estrangeiros ele queria no Brasil, tendo como preferência brancos, católicos e apolíticos. Especialmente depois do levante comunista final de 1935 o Estado iniciou uma repressão violenta e inúmeros estrangeiros passaram a ser alvo de controles e de fiscalização.
Rodrigo Valente e Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro
Rodrigo Valente e Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro

Fuzilado na Espanha
Um exemplo de expulsão fruto dessa grande repressão é o caso do espanhol Francisco Márquez Martínez. Pai de quatro filhos, morava em São Caetano e trabalhava como artesão, produzindo sapatos. Márquez foi preso por ter em casa livros e folhetos políticos e foi expulso do Brasil em 1936. Chegando na Espanha o artesão foi fuzilado por rebeldes nacionalistas. E esse é apenas um caso de muitos: “são histórias que poderiam ser livros, filmes, que precisam ser alvo de investigação e que precisam ser mais conhecidas pelo Brasil”, defende Valente.
Muitas vezes essas expulsões significavam pena de morte, como foi o caso de Martinez e o conhecido caso da Olga Benário. A militante comunista, companheira de Luís Carlos Prestes, foi mandada pelo governo de Vargas para a Alemanha e acabou morrendo em um campo de concentração. O governo também perseguiu inúmeros judeus: do leste e do centro da Europa foram cerca de 250 judeus expulsos do país. “O governo brasileiro, desses atos nunca se desculpou. “Eu defendo, a criação de uma Comissão da Verdade para investigar os fatos ocorridos nesse período”, argumenta a pesquisadora Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro, referindo-se à Comissão Nacional da Verdade. Valente também compara a primeira Era Vargas com a Ditadura (1964-1985), destacando que a segunda foi bem mais investigada do que a primeira.
“Existe um senso comum de que o brasileiro é cordial com o imigrante. Nossas pesquisas mostram que não é um estado cordial e que isso tem as suas permanências e seus reflexos na sociedade”, explica a historiadora Ismara Izepe de Souza. Ela defende que o estado não é cordial, e que isso se revelou na criação de leis como a Lei Adolfo Gordo, de 1907, que propunha a expulsão de estrangeiros envolvidos em greves. Valente lembra que legislações do final do Estado Novo em 1946 e de 1967 na época da Ditadura trouxeram elementos desfavoráveis para o estrangeiro, que permaneceram inalterados por décadas.
Hoje a situação para estrangeiros melhorou graças a nova Lei de Migração, promulgada em 2017. Isso mesmo com a regulamentação feita pelo presidente Michel Temer (MDB), que anulou garantias previstas deixando margem para arbitrariedades e que, por contrariar o texto aprovado pelo Congresso Nacional, vem sendo questionada por organizações de defesa de direitos humanos e especialistas no tema. O momento é de apreensão entre grupos que trabalham com migrantes não só pela regulamentação que descaracteriza parcialmente a nova lei, mas também em função de iniciativas confusas e contraditórias do Poder Executivo em relação ao previsto na nova legislação. Um exemplo é o anúncio feito pelo Governo Federal de que, frente ao aumento recente do número de imigrantes oriundos da Venezuela, uma das principais medidas seria dobrar o efetivo pra controle militar na fronteira.
ponto17

De volta para o passado?
Ponto de Debate n. 17, dezembro de 2017
20 paginas
Baixe a publicação sem custos (formato PDF)
Autora e autor: Juliana Sada e Rodrigo Valente
ISSN 2447-3553
Ponto de debate é uma publicação editada pela Fundação Rosa Luxemburgo como apoio de fundos do Ministério Federal para a Cooperação econômica da Alemanha (BMZ). Abre espaço para o debate de temas sob a diretriz Bem Viver no Brasil e no Cone Sul: Direitos humanos e da natureza na perspectiva de transformação, justiça social e justiça ambiental.

Fotos: Jorge Pereira e Gerhard Dilger