A situação dos transportes públicos foi tema de debate no Fórum Social Mundial. Participantes discutiram a importância de políticas de tarifa zero mencionando exemplos no Brasil e no exterior
Marina Berhorn de Pinho
“Transporte: um direito do cidadão, um dever do Estado”. A frase está estampada em todos os ônibus de São Paulo, maior cidade do Brasil, e desde 2015, com a aprovação da emenda constitucional 90/15, encontra respaldo na Constituição Federal. Pela nova lei, que incluiu transporte como um direito social, o mesmo deveria ser público, universal e acessível, igual a saúde e a educação. Na prática, no entanto, trata-se de um direito que precisa ser adquirido, por um preço que vem subindo consideravelmente. A Associação Nacional de Transportes Públicos mantém um histórico do aumento das tarifas nas cidades com mais de 500 mil habitantes nos últimos anos. A última atualização é de julho de 2016, mas, mesmo desatualizado, o repositório ajuda a ter uma ideia da variação. Em São Paulo, a cidade que traz o aviso estampado nos ônibus, mesmo com a promessa do prefeito João Doria Jr. (PSDB) de que não aumentaria as passagens, o preço do ônibus subiu em 2018 para R$ 4,00 e o da integração com metrô e trem para R$ 6,96.
Os crescentes preços do transporte público levantam a questão sobre o transporte ser ou não um direito do cidadão. Transporte não deveria ser de graça?
No contexto do Fórum Social Mundial, realizado em Salvador de 13 a 17 de março, a Fundação Rosa Luxemburgo organizou o encontro «Tarifa zero: perspectivas e exemplos de política de passe livre no Brasil e no mundo». O evento foi uma mesa-redonda para discutir a situação dos transportes públicos no Brasil, a viabilidade da implementação do passe livre no país e exemplos de cidades com transporte público gratuito.
Assista ao vídeo de alguns momentos do debate:
Veja também: na íntegra, transmissão do evento pelo Facebook (parte I e parte II).
Participaram Daniel Caribé, ex-integrante do Movimento Passe Livre de Salvador e que atualmente é pesquisador de doutorado da Faculdade de Arquitetura da UFBA sobre a temática dos transportes; Judith Dellheim, pesquisadora alemã da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim que tem acompanhado diferentes processos de implementação de políticas de passe livre na Europa; e Lucio Gregori, ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo durante gestão de Erundina e defensor do sistema de tarifa zero. A moderação foi de Daniel Santini, da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo.
Acesso, direitos e desigualdade
Lucio Gregori defende que no Brasil o transporte possui três fins: manter a sociedade e a economia funcionando, perdurar a desigualdade e dar continuidade a um modo de vida baseado em consumo e desperdício. Ele lembra que empresas automobilísticas e de petróleo gastam milhares de reais em propaganda, mantendo positiva suas imagens.“Existe um conjunto de discriminações, de periferizações e segregação racial e social que estão garantidos inclusive pela não mobilidade de milhares de pessoas”, detalha.
“Não é só deslocamento de pessoas, é um montão de restrições disfarçadas sobre dificuldade de locomoção”, argumenta Gregori, lembrando que pela falta de qualidade e alto preço do transporte público há uma obstrução da efetiva democratização e o acesso à cidade é impedido. Ele lembra que o discurso do poder dominante é de que transporte não pode ser gratuito por faltarem recursos, mas aponta alternativas. Uma boa maneira de se arrecadar esse dinheiro, exemplifica, seria por meio de uma reforma tributária com o pagamento de mais impostos pela parcela mais rica da população: “Rico tem que pagar imposto, senão essa coisa não sai do lugar.” No Brasil, o imposto é proporcionalmente cobrado majoritariamente sobre consumo e não sobre posses e bens.
Pedágio urbano
Outra maneira de financiar o transporte gratuito seria a implementação de um imposto de congestionamento, também conhecido como pedágio urbano. O pedágio urbano é a cobrança de taxas para a utilização das ruas. Essas taxas são maiores durante certos períodos do dia e em certos lugares, normalmente lugares mais frequentados e com elevado trânsito. O pedágio já foi instituído em diferentes cidades pelo mundo, como Cingapura, Estocolmo e Londres, e tem como objetivo a diminuição do trânsito, assim como o desencorajamento do uso de automóveis em certas partes da cidade.
Gregori, no entanto é contra essa taxação. Ele critica que com a implementação de tal pedágio a rua deixaria de ser de uso universal: “Quando você institui a taxa, você deixou a rua parar de ser um bem de uso comum e passa a ter uma mercadoria de diferente acesso diante da capacidade de pagamento”, complementa.
Daniel Caribé também se coloca contra a implementação dessas taxas. Ele explica que hoje não são apenas os ricos que utilizam carros, mas também os pobres, principalmente por morarem nas periferias. “Quando você propõe um pedágio urbano, você está propondo isentar os ricos, que podem acessar os centros de bicicleta ou a pé, e acaba penalizando aquele que já é penalizado, que mora longe, o pobre”, posiciona-se Caribé.
Tarifa zero: a salvação?
Com a implementação de transporte público gratuito podem também surgir vários problemas. Uma crítica, por exemplo, é que o transporte gratuito desencorajaria as pessoas a andarem a pé ou de bicicleta. Todavia, Judith Dellheim não vê isso como um problema, mas sim como um desafio: “Seria muito fácil dizer que transporte público gratuito resolveria todos os problemas.”
Durante a conversa surgiu também o questionamento sobre o motivo de parte da esquerda não apoiar o transporte público gratuito. Lucio Gregori, que foi secretário municipal de Transportes de São Paulo durante a gestão da prefeitura do PT e que tentou implementar a tarifa zero, lamenta que mesmo dentro do partido existam setores contrários ao passe livre. Mencionando como um exemplo a política de redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a indústria automotiva, que pode ser entendida como um subsídio para o uso de carros em detrimento a investimento no transporte público, ele reclama da maneira como a mobilidade foi tratada pelo Governo Federal durante os governos do PT. E critica também a ideia defendida pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva de que para “subir na vida” as pessoas precisariam ganhar bem o suficiente e, assim, pagar por um transporte de qualidade ou comprar carros. Gregori defende que mudanças só acontecerão se houver uma profunda transformação das formas de produção e apropriação de riqueza, não limitada a ampliar o consumo. Sem ela, apenas frações da sociedade poderão ter acesso a direitos, afirma.
Mesmo com partes da esquerda deixando de apoiar o transporte público gratuito, a tarifa zero vem ganhando força mundialmente com o argumento de ser também uma estratégia para economizar recursos e, assim, preservar o meio ambiente. O aumento do uso do transporte público reduz a necessidade de utilização dos carros, diminuindo a poluição produzida por automóveis. Hoje, esse argumento é apresentado tanto por partidos de direita quanto de por de esquerda. Por final, Daniel Caribé vê a implementação do transporte gratuito como um grande passo em direção ao direito a cidade: “é viável, é possível , é necessário e o impacto na vida das pessoas é imensurável.”
Fotos: Gerhard Dilger