Movimento pela Soberania Popular na Mineração celebra seis anos de existência e se desafia a pautar o Brasil sobre uma das cadeias produtivas mais conflituosas do país
Por Verena Glass
Em meados de maio deste ano, cerca de 700 pessoas de 16 estados do país se reuniram em Parauapebas, no sudeste do Pará, para discutir um tema que, ao mesmo tempo que impacta a vida de centenas de comunidades e famílias, pouco espaço ocupa no imaginário do povo brasileiro: a extração, o processamento, o transporte e os impactos da mineração.
Para o grande público, a imagem do que é mineração no Brasil possivelmente seja a mina de ferro de Carajás (da Vale), a maior do mundo, assentada pelos militares dos tempos da ditadura na região onde hoje cresce desordenadamente a cidade de Parauapebas. Mais recentemente, o pior crime ambiental da história do país, protagonizado pela mesma Vale e pela BHP Billiton, em Mariana, e que vitimou fatalmente 19 pessoas, deixou morto o rio Doce e afetou centenas de comunidades nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, causou comoção nacional. Principalmente pela cortesia da impunidade dispensada pelo Estado e pelo Judiciário aos réus. Mas poucos têm a consciência dos impactos mais amplos de Carajás, ou de que ocorrências como a de Mariana se multiplicam país afora. Com especial destaque à impunidade.
Um dos estados mais afetados pelas atividades minerárias no Brasil, o Pará tem sido também um dos principais palcos dos conflitos ligados ao setor. Assim, foi na região do projeto Grande Carajás que, há cerca de seis anos, impulsionada inicialmente por militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), nasceu uma articulação chamada à época de Movimento dos Atingidos por Mineração – MAM, com a bandeira de unificar as lutas das vítimas da indústria minerária. De lá para cá, o MAM se nacionalizou.
Mantendo a mesma sigla, mudou o nome para Movimento pela Soberania Popular na Mineração, e em meados de maio de 2018 realizou seu I Encontro Nacional, reunindo em Parauapebas cerca de 700 pessoas – entre agricultores, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, trabalhadores, universitários e pesquisadores, além de representantes de movimentos da África do Sul, Colômbia, Equador e Peru – de 16 estados (Piauí, Ceará, Bahia, Pernambuco, Amapá, Maranhão, Tocantins, Pará, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo).
Desafios
Com o I Encontro Nacional do MAM na moldura, é possível visualizar um quadro complexo que realça alguns dos grandes desafios que o movimento enfrentará no seu processo de constituição como organização social nacional.
Em primeiro lugar, diferente do MST (do qual se originou) ou de outros movimentos da Via Campesina, como o MPA (Movimento de Pequenos Agricultores) ou CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a base com a qual o MAM pretende trabalhar é múltipla, diversa e, por vezes, antagônica. Como criar uma cultura interna que possibilite lidar ao mesmo tempo com comunidades indígenas, quilombolas, pescadoras, agricultoras; com comunidades urbanas afetadas pelo (mal) (ab)uso das águas ou pela poluição gerada na extração e no processamento siderúrgico dos minérios; com comunidades impactadas pelas ferrovias ou minerodutos que escoam a produção minerária; com operários precarizados das minas; com trabalhadores terceirizados e ultraprecarizados; com garimpeiros artesanais, e outros?
Fabiano Bringel, professor da Universidade do Estado do Pará em Belém, exemplifica: no recente transbordamento da bacia de rejeitos da multinacional Hydro, em Barcarena (PA), as comunidades afetadas exigiram das autoridades a paralisação da mineração. Já os trabalhadores, sua continuidade. Como lidar com este paradoxo? Como organizar categorias tão distintas em suas culturas e relações com os territórios, ou onde a dependência das empresas mineradoras parece insuperável e seus impactos insuportáveis?
Outro desafio do movimento é a regionalidade e a especificidade da atividade minerária em território nacional. De acordo com Marcio Zonta, coordenador do MAM em São Paulo, são extraídos e processados atualmente cerca de 80 produtos minerários distintos em todo o país. Como atuar frente às especificidades da mineração de urânio na Bahia, de granito no Rio Grande do Sul, de ouro em Goiás ou de bauxita no Pará? Como lidar com os garimpos de esmeralda no sertão baiano ou de diamantes e ouro em terras indígenas no Alto Tapajós (PA)? Como tratar dos impactos de guseiras, das novas e velhas ferrovias para o escoamento, do mineroduto entre Minas Gerais e Rio de Janeiro?
E, por fim, o ponto central: o que o MAM subentende como soberania popular na mineração? Qual a “alma” do MAM? Qual sua bandeira, sua estratégia, quais suas táticas?
Radicalidade moderada
Um elemento central para o MAM, amadurecido durante os seis anos em que o movimento buscou aglutinar força política e reflexões sobre o setor minerário no Brasil, explica Charles Trocate, dirigente nacional e fundador do MAM em Parauapebas, é não negar a mineração como principio fundante. Nesse sentido, explica, são três as orientações centrais do movimento: resistência à implantação de projetos em novos territórios (o direito de dizer não à mineração), luta contra a expansão e pela superação da mineração onde a conjuntura permitir, e luta pelo controle social dos bens naturais minerários do país – o que inclui participação social na discussão e elaboração das políticas para o setor, na definição da aplicação dos recursos gerados, e na definição das formas, dos territórios e da destinação da produção de minérios.
“Simplesmente dizer ‘não à mineração’ não abarca a complexidade dos setores com os quais o MAM dialoga. Há lugares em que é possível negar a mineração e construir outras formas de economia. Aí não podemos negociar mitigação, temos que resistir e propor uma alternativa. Há lugares onde devemos superar a mineração, há acúmulo de forças onde isso é possível. Mas há lugares – como Parauapebas – onde não conseguimos evitar a mineração.
O que precisamos é organizar as forças sociais para dar outro destino ao que Carajás produz”, explica Trocate. “Falar que somos contra a mineração nos dificulta o diálogo com a sociedade. Nenhuma sociedade vive sem mineração, mas não pode ser de qualquer jeito, impactando tudo. Temos que construir um pacto com a sociedade brasileira. Nosso lema é: negar, superar, e onde não é possível, controlar do ponto de vista social e popular”, complementa.
Segundo o dirigente, é importante frisar que este é o discurso de nascimento do MAM. “Espero que se radicalize. Temos uma grande necessidade de formação política, temos que avançar para além das denúncias [dos impactos], e temos que recolher a sabedoria popular para entendermos o que é soberania popular. O programa do MAM não está pronto. O que temos são as nuances que o comporão”.
O que está claro, no entanto, pontua Trocate, é que as respostas ao conflito minerário e a base das resistências têm que estar vinculadas à desobediência civil e não a um processo de burocratização e institucionalização do movimento. “A desobediência civil deve ser a nossa marca. Temos que desobedecer às leis do capital, ao código da mineração, e temos que desvincular as ações das comunidades da institucionalidade do Estado”.
De olho nos impostos
O MAM tem adotado um discurso profundamente crítico ao que entende como relação incestuosa do Estado e do poder público com o capital, à atuação do Estado como continuidade do empresariado minerário nos procedimentos de licenciamento, nos processos legislativos e na leniência com desvios e crimes sociais e ambientais. Nesse sentido, afirma Marcio Zonta, o movimento terá que criar uma fissura nesta relação Estado-capital.
Por outro lado, o MAM elegeu como prioritárias duas pautas que dialogam intimamente com a institucionalidade estatal: a luta pelo aumento do valor da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, ou royalties da mineração, paga pelas empresas aos Municípios (65%), aos estados e Distrito Federal (23%), e a órgãos da administração direta da União (12%)) e o fim da Lei Kandir, que isenta de pagamento de ICMS produtos e serviços destinados à exportação.
Apesar de não haver nenhuma previsão legal de destinação dos royalties arrecadados por estados e municípios a compensações ambientais ou sociais, saúde, educação ou outro benefício à população afetada pela mineração, de acordo com a coordenação do MAM “lutar pelo aumento da CFEM não deve ser um problema para nós; porque quanto mais alta a taxa que uma empresa terá que pagar ao poder público, menos ela quererá se instalar aqui. As empresas estão entrando em qualquer lugar porque não pagam tanto imposto”, argumenta a direção do movimento.
“Estamos tentando construir um pensamento crítico na sociedade sobre a mineração”, resume Charles Trocate. “Em muitos lugares nós vamos construir o MAM, mas em outros, se ajudarmos a fazer com que a sociedade entenda que há um problema mineral em curso, já teremos cumprido um papel importante. Nos próximo período, de 2018 a 2021, temos que pensar na agroecologia como superação da mineração, formação política como superação da mineração, e comunicação e massificação do conhecimento sobre o conflito minerário”. E, claro, o aprofundamento dos esforços de nacionalização do movimento. “Derrotar as resistências é mais fácil se não estivermos organizados”, complementa Marcio Zonta. “Em todo o país, há territórios onde as mineradoras ainda querem entrar. Um saque enorme que ainda está por vir. Portanto, onde houver conflito com as mineradoras, vamos incidir de forma nacional”.
Resoluções
Leia abaixo as resoluções constantes do documento final do encontro nacional do MAM:
1- Onde houver mineração, lutarmos pela não ampliação dos empreendimentos minerários; pelo pagamento, aumento e democratização da CFEM aos interesses populares e pelo fim da Lei Kandir.
2- Onde houver especulação para tomada dos territórios (indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, camponesas e ribeirinhas) pelas mineradoras, faremos o que for necessário para enfrentar esse modelo mineral que está colocado – seja cava, ferrovia, barragem de rejeito, mineroduto ou porto.
3- Denunciar e combater as práticas de evasão de divisas utilizadas pelas mineradoras nos paraísos fiscais.
4- Denunciar e combater as contaminações que são fruto da exploração mineral – da água, do solo e do povo que vive no entorno dos projetos.
5- Contribuir com os trabalhadores mineiros nas pautas relacionadas ao direito à saúde e segurança dos trabalhadores.
6- Contribuir na Construção da Frente Brasil Popular e do Congresso do Povo nos municípios em que estamos presentes.
7- Continuar a construção do feminismo enquanto principio de uma nova sociedade, que luta pela libertação de homens e mulheres, no combate ao machismo e na violência contra as mulheres.
Sabemos que esses compromissos necessitam de muito esforço e unidade com diversos setores progressistas da sociedade para que sejam cumpridos e dessa forma apontar o programa de soberania popular na mineração. Somente dessa forma poderemos fazer com que o povo brasileiro possa colocar em cheque esse modelo predatório de sociedade e assim apontar a construção do Projeto Popular para o Brasil.
Por um país soberano e sério, contra o saque dos nossos minérios!
Parauapebas, 21 de maio de 2018.
Movimento pela Soberania Popular na Mineração