Piquiá de Baixo: parábola de resistência e esperança

Uma entrevista com o padre Dário Bossi sobre os deslocamentos forçados e a ausência do Estado brasileiro em Açailândia.
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Por Patricia Fachin, Instituto Humanitas Unisinos
A situação da comunidade de Piquiá de Baixo, que vive no bairro industrial da cidade de Açailândia, no Maranhão, denunciada internacionalmente, foi tema da audiência sobre “Violência contra Povos Indígenas” na Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da Organização dos Estados Americanos – OEA, em Washington, nos EUA.
De acordo com Dário Bossi, que acompanha a situação dos moradores da região, a principal reivindicação das famílias “é o reassentamento coletivo numa região livre da poluição”, já que há 27 anos a comunidade “sofre pelos danos provocados por cinco empresas siderúrgicas e pelas atividades de escoamento de ferro da mineradora Vale S.A.”.

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O padre Dário Bossi

Na entrevista a seguir, Bossi explica que a audiência na CIDH “denunciou a falta de qualquer programa governamental, no Brasil, que trate casos de deslocamentos forçados de famílias ou comunidades”. Contudo, acentua, o “governo justificou-se, em Washington, explicando que esses problemas deveriam ser tratados desde o começo, por ocasião dolicenciamento ambiental de qualquer projeto que venha a ameaçar uma determinada comunidade”. Entretanto, frisa, “no caso da comunidade de Piquiá de Baixo e da inteira instalação dos empreendimentos minero-siderúrgicos do Programa Grande Carajás, em meados dos anos 1980, nem houve licenciamento ambiental”.
Dário Bossi informa que até o momento a solução encontrada para resolver a situação dos moradores de Piquiá de Baixo é o financiamento parcial do reassentamento com o dinheiro do Programa Minha Casa Minha Vida. “A grande preocupação da comunidade, porém, deve-se à suspensão desse programa, que não selecionou nenhum novo projeto desde o início de 2015. Não se pode atrelar uma situação de emergência e grave violação de direitos humanos à flexibilidade de um programa governamental tão amplo, lento e complexo. Piquiá de Baixo reivindica a imediata disponibilização, por parte do governo, dos fundos necessários ao reassentamento!”, conclui.
Dário Bossi, padre comboniano, é membro da rede Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Como foi a audiência sobre «Violência contra Povos Indígenas» na Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da Organização dos Estados Americanos – OEA, em Washington, nos EUA?
A audiência reuniu diversos casos de violações de direitos humanos contra populações indígenas no Brasil. Destacaram-se os casos dos Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul, dos Tenharim do Amazonas e dos Ka’apor e Awá Guajá do Maranhão. Tratou-se também da disputa violenta de territórios por parte dos grandes projetos contra as comunidades que, ao contrário, insistem em afirmar seu direito à autodeterminação nos locais onde há tempo estão vivendo.
No Brasil aumentam os conflitos envolvendo o direito à terra e ao território, devido ao modelo desenvolvimentista e extrativista, que tem a terra como principal fonte de exploração econômica. A parte em desvantagem nesses conflitos são as populações que utilizam o território para garantir seus modos de vida não mercantis, em contextos rurais e urbanos: são indígenas, quilombolas, moradores de periferias urbanas, pescadores artesanais, negros e mulheres. Não se pode imaginar resolver esses conflitos somente negociando um custo social com a parte em desvantagem. Há direitos individuais e coletivos inalienáveis e inegociáveis. Nesses conflitos, frequentemente o Estado e as empresas atuam de forma articulada: o primeiro principalmente por omissão, as segundas gerando graves violações e fugindo de sua responsabilidade de mitigação e reparação dos danos. 
O caso da comunidade de Piquiá de Baixo também foi abordado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Quais são os conflitos que envolvem essa comunidade?
Piquiá de Baixo é o bairro industrial da cidade de Açailândia-MA. Essa comunidade sofre há 27 anos pelos danos provocados por cinco empresas siderúrgicas e pelas atividades deescoamento de ferro da mineradora Vale S.A. Esse grande complexo instalou-se no território da comunidade, onde vivem mais de 1.100 pessoas, poluindo o ar, a água e o solo.
A vida é insustentável naquela região, e um laudo judicial já demonstrou a impossibilidade da convivência entre empresas e famílias. Doenças agudas e crônicas, mortes por câncer pulmonar ou insuficiência respiratória especialmente dos mais idosos acontecem frequentemente na comunidade e têm sido comprovadas por uma pesquisa da Federação Internacional dos Direitos Humanos, realizada ainda em 2011, com sérias recomendações ao governo brasileiro e às empresas, que ainda não foram cumpridas.
O caso de Piquiá de Baixo é conhecido internacionalmente e despertou a solidariedade de entidades como a Aliança Internacional dos Habitantes, Vivat International, a Rede Eclesial Pan-Amazônica. Jornalistas internacionais já realizaram reportagens sobre essa grave situação, publicadas, entre outros, em veículos como Washington Post,International Press Service, Telesur etc. O próprio Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas – ONU enviou uma interpelação formal ao governo brasileiro com dez perguntas específicas sobre a situação no Piquiá de Baixo.
Que questões foram discutidas na audiência? Quais as reivindicações da comunidade de Piquiá de Baixo?
Danilo Chammas, advogado da JnT, na sessão da CIDH (Foto: JnT)
Danilo Chammas, advogado da JnT, na sessão da CIDH (Foto: JnT)

A principal reivindicação das famílias do bairro, definida a partir de uma consulta popular ainda em 2008, é o reassentamento coletivo numa região livre da poluição. Não conseguindo erradicar as empresas nem impor um controle severo das emissões, a comunidade decidiu pelo direito de reconstruir sua vida num outro local, garantindo sua unidade, o direito à saúde e dignidade para seu futuro. Nessa luta coletiva, a Associação de Moradores já conseguiu garantir a propriedade de um bom terreno, que foi desapropriado para reassentar a comunidade, um compromisso de financiamento parcial por parte das empresas na construção do bairro e a aprovação pela Caixa Econômica Federal do projeto urbanístico-habitacional realizado em mutirão pela comunidade, com uma qualificada assessoria técnica.
As reivindicações do presidente da Associação de Moradores, o camponês Edvard Dantas Cardeal, em Washington, foram: (a) a imediata seleção do projeto por parte do Ministério das Cidades e o consequente financiamento da parte de fundos que ainda faltam para iniciar as obras; (b) a mitigação das emissões, através de monitoramento efetivo por parte do poder público; (c) a prevenção e cura dos danos à saúde da população, através de um adequado sistema de saúde no bairro e na cidade de Açailândia.
Quais foram os principais relatos de Edvard na audiência?
Seu Edvard, visivelmente emocionado, relatou à Comissão o drama de estar sofrendo junto à sua comunidade sem saber a quem apelar e como garantir para todos saúde, justiça e dignidade. Disse que sua primeira tentativa foi uma carta ao então presidente Lula: imaginava que, por ter tido a experiência de condições humildes e sofridas, ele pudesse compreender uma inteira comunidade que hoje está na mesma situação. A resposta da Secretaria da Presidência à época, mesmo que formal, empolgou o pequeno presidente da associação, que conseguiu aos poucos tecer ao seu redor uma forte rede de assessores e aliados, que levaram hoje suas denúncias e reivindicações até as instituições internacionais de defesa e garantia de direitos.
Em que consiste o interesse do Ministério das Cidades de incluir o reassentamento do povoado Piquiá de Baixo no Programa Minha Casa Minha Vida? Como o senhor avalia essa proposta?
A audiência na CIDH denunciou a falta de qualquer programa governamental, no Brasil, que trate casos de deslocamentos forçados de famílias ou comunidades. Frente a situações tão frequentes, pela intensificação do modelo desenvolvimentista e a disputa de territórios que descrevíamos antes, não existe nenhum tipo de programa ou previsão de reparação sistemática. Assim, de um lado as comunidades sofrem a impotência de defender seu direito à permanência num determinado território; do outro lado, devem adequar-se a condições de remanejamento muitas vezes injustas, que dividem a comunidade e individualizam os interesses.
O governo justificou-se, em Washington, explicando que esses problemas deveriam ser tratados desde o começo, por ocasião do licenciamento ambiental de qualquer projeto que venha a ameaçar uma determinada comunidade. Mas, no caso da comunidade de Piquiá de Baixo e da inteira instalação dos empreendimentos minero-siderúrgicos doPrograma Grande Carajás, em meados dos anos 1980, nem houve licenciamento ambiental.
Assim, a solução que está sendo encontrada para resolver a grave situação de Piquiá de Baixo é o financiamento parcial do reassentamento com o dinheiro do Programa Minha Casa Minha Vida. A grande preocupação da comunidade, porém, deve-se à suspensão desse programa, que não selecionou nenhum novo projeto desde o início de 2015. Não se pode atrelar uma situação de emergência e grave violação de direitos humanos à flexibilidade de um programa governamental tão amplo, lento e complexo. Piquiá de Baixo reivindica a imediata disponibilização, por parte do governo, dos fundos necessários ao reassentamento!
Como foi a audiência dos missionários combonianos com o Papa Francisco?
Em 1º de outubro deste ano tivemos a alegria e a graça de nos encontrar em audiência com Papa Francisco, em Roma. Missionários Combonianos empenhados na evangelização em diversos países do mundo estavam reunidos por ocasião do Capítulo Geral. O Papa quis nos receber e nos reservou palavras de carinho e incentivo, inclusive parabenizando o trabalho dos missionários, apesar dos riscos que correm. Naquela ocasião, pudemos explicar brevemente a situação da comunidade de Piquiá de Baixo. Trazíamos no coração as recentes palavras de Francisco aos movimentos sociais, na Bolívia: «Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos (…). Continuai com vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra».
Tínhamos conosco uma foto da comunidade de Piquiá de Baixo e uma camiseta da luta da Associação, trazendo a escrita «Reassentamento já!». Doamos a camiseta ao Papa Francisco e ele aceitou tirar uma foto conosco, em sinal de apoio e solidariedade a essa justa reivindicação.
Lembramos a Francisco que no Brasil estamos trabalhando intensamente junto à Rede Eclesial Pan-Amazônica, que inclusive já tinha acenado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a urgência da solução do caso dePiquiá de Baixo. O Papa nos incentivou a continuar firmes nessa rede em defesa da vida na Amazônia.
Que relações estabelece entre os temas abordados na Encíclica papal e a situação da comunidade de Piquiá de Baixo?
A Laudato Si’ tem trechos que tratam de situações muito próximas àquela de Piquiá. Vejamos por exemplo o n. 152: «A falta de habitação é grave em muitas partes do mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades, nomeadamente porque os orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma parte da procura. (…) A propriedade da casa tem muita importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das famílias. Trata-se de uma questão central da ecologia humana. Se num lugar concreto já se desenvolvem aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados perigosos, no caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não acrescentar mais sofrimento ao que já padeceram, é necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação, oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver diretamente os interessados».
Deseja acrescentar algo?
A história de Piquiá de Baixo, internacionalmente conhecida por seu drama, pode-se tornar uma parábola existencial de resistência, esperança e vitória da dignidade. O próprio governo brasileiro pode demonstrar ao mundo sua capacidade de reverter danos históricos em novas oportunidades para as pessoas. Reconhecer que em Piquiá há graves violações de direitos significa assumir a responsabilidade política de «converter o modelo de desenvolvimento global. (…) Não é suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente de redefinir o progresso» (LS 194).
É nesse sentido que uma pequena luta se torna simbólica, profética e potencialmente transformadora. Gritemos todas e todos juntos: «Piquiá: reassentamento já!»
Fotos: Justiça nos TrilhosCIDH

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