Por Elaine Tavares, alai
A mãe de S.M.L tinha um plano para ela. Iria trabalhar numa repartição pública e casar com um bom rapaz, para lhe dar muitos netos. Tudo parecia seguir o curso, mas, quando tinha 20 anos S. conheceu um cara. Ele era músico e, na cidade, um marginal. A mãe jamais o aceitaria. Ela não deixou passar a oportunidade de viver um amor. Viveu. Só que com esse amor veio uma gravidez. S. não entendeu bem como, era pouco informada e quando se deu conta de que a menstruação falhara, entrou em pânico. O namorado não queria casar, ela não podia ter um filho. A mãe morreria, pensava. Tomou todos os chás que ensinaram e nada. Não havia jeito. Tinha de abortar.
Vivendo numa pequena cidade não haveria como fazer. Com as amigas armou tudo. Conseguiu o endereço de uma clínica numa cidade vizinha. Para lá iria. Conseguiu o dinheiro depois de algum tempo e se foi. Sozinha. Quando chegou na clínica apavorou-se. Tudo parecia muito sujo. Mas, o medo de decepcionar a mãe era maior do que tudo. A enfermeira chamou e ela entrou. Uma mesa de lata, do tipo que se vê em hospital, uma mesinha com instrumentos e um homem já com a máscara cirúrgica. A mulher, mal-humorada, mandou que tirasse a calça. Ela tirou. E o que se seguiu àquele momento foi o inferno. Hoje, relembrando, S. acredita que tudo foi feito sem qualquer cuidado. Ela sentia tudo, a dor intensa, algo sendo arrancado, o sangue borbulhando e aquele barulho dos instrumentos. A cara de reprovação da mulher, os olhos do médico. Tudo vem a mente como num filme de horror.
Quando tudo terminou ela ainda ficou deitada por algumas horas. As lágrimas vertendo. Pelo que passara, pelo que fizera. O medo, a culpa, tudo se remexendo dentro do peito. Passado o tempo requerido pelo homem que fizera o aborto, ela foi mandada embora. Nenhuma receita, nenhuma palavra. Ela saiu do lugar, cambaleando. Sentia-se fraca. Andou pouco menos de uma quadra e entregou-se a uma vertigem. Um rapaz que passava a amparou e a levou para uma farmácia mais adiante. Ela sangrava sem parar. O farmacêutico, possivelmente experiente naqueles fatos, deu-lhe um remédio e a faz descansar. «Eu pensei que ia morrer. Estava me esvaindo em sangue. Não sabia o que fazer e ainda tinha de pegar o ônibus e volta para casa. O fato é que sobrevivi, mas, hoje, passados já 40 anos, ainda me assalta a culpa e a dor. Eu me casei, mas não tive filhos. Não me achava digna».
S. teve sorte. Saiu viva da experiência de um aborto clandestino. Mas, no Brasil, onde são praticados mais de 800 mil abortos por ano, pelo menos 2.100 (dados oficiais) mulheres morreram nos últimos 15 anos, por conta de procedimentos como esse, ou outros ainda mais bizarros, invasivos e violentos. Se considerarmos o número real, que é o das mulheres que morrem sem que sejam contabilizadas nas estatísticas, a situação ainda fica mais grave. Conforme o Ministério da Saúde, o aborto é a quinta causa da morte materna. Logo, isso não é um problema moral. É uma questão de saúde pública. Não é sem razão que as mulheres lutam para que esse tipo de procedimento seja feito pelo sistema de saúde, de maneira pública e segura. E qualquer uma que tenha passado por esse drama sabe que o aborto nunca é uma decisão fácil. Ninguém vai para um aborto como se fosse a uma festa. É sempre uma dor.
S. estava na passeata que reuniu, em Florianópolis, no dia 06 de novembro, dezenas de pessoas no grito de «Fora Cunha», numa alusão ao deputado Eduardo Cunha, autor do Projeto de Lei 5069, que dificulta o aborto legal para mulheres que tenham sofrido estupro, impedindo o anúncio ou a prescrição de pílulas do dia seguinte. A lei ainda prevê prisão para quem induza ou ajude à prática de aborto, e permite que um profissional de saúde se recuse a dar qualquer medicamento que considere abortivo. Atualmente as vítimas de estupro, ao declararem o crime, podem fazer o procedimento de maneira legalizada no sistema de saúde. Com a lei do Cunha, a mulher terá de provar que foi estuprada com exames de corpo de delito e queixa na polícia. Ora, qualquer pessoa sabe que um estupro é algo brutal, que deixa uma mulher em choque. Como exigir de uma pessoa violentada que ela aja com racionalidade cirúrgica visando comprovar a violência? A lei é, de fato, ela mesma, uma violência contra as mulheres.
Não é sem razão que esse PL está levantando as mulheres em luta por todo o país. Primeiro, porque como já se mostrou, o aborto não é uma questão moral. Ele é vivenciado por milhares de mulheres por causas tão variadas, que vão desde o medo de magoar a mãe até a completa incapacidade de proteger e criar uma criança. Cabe à mulher definir o que fazer com seu corpo. Esse é um direito que ela tem, e ninguém no mundo deveria julgar alguém por decidir sobre si mesmo. Da mesma forma, um estupro tampouco pode ser tratado como um problema moral, culpabilizando as mulheres pela violência. Se uma mulher violada quiser viver sem o fruto da violência, essa é uma decisão que lhe cabe. Ao estado resta cuidar e proteger.
A lei proposta por Cunha consegue regredir ainda mais na já conservadora legislação que existe em relação ao aborto. E é por isso que as mulheres estão realizando protestos, buscando impedir mais um retrocesso. Em Florianópolis, S., que é de outra geração, marchou com as garotas e chorou. «Hoje nós vemos que as mulheres se protegem mais. Naquele tempo em que eu tive de abortar eu estava sozinha, não só no dia de fazer a coisa, mas na dor. Não havia com quem repartir. Hoje eu vejo essas meninas aqui, se amparando, lutando por todas as mulheres, eu me emociono».
A chamada bancada da bíblia, da qual Cunha é o mais importante representante, tem demonstrado poder, mas, a considerar a força das ruas, pode ser que a lei acabe arquivada. Nessa semana que começa novos atos estão planejados por todo o país e as mulheres estão engrossando cada dia mais as caminhadas e os protestos. Com tambores soando no ritmo do coração, elas gritam: «Fora Cunha, inimigo das mulheres. O estado é laico. O corpo é nosso». E esse é um grito que vai crescendo e tomando conta mesmo daquelas que nunca tiveram coragem de sair numa passeata política. Como Rose, uma balconista que viu passar a marcha e ficou com os olhos arregalados, brilhando de alegria. «Eu sei o que é esse terror que a gente passa quando se vê grávida, sozinha e sem saída». E foi por saber que ela pegou a bolsa e saiu atrás da caminhada, somando-se ao coro: «mexeu com as mina, mexeu com satanás».
As mulheres estão na rua, e o que é melhor, não é apenas pela pílula do dia seguinte. Elas sabem que esse congresso quer muito mais atraso, nas leis trabalhistas, na ação anti-indígena, no reforço ao agronegócio. E, por isso, elas vão lutar com unhas e dentes para impedir a retirada de direitos e o retrocesso.