"Na América Latina não há governos anticapitalistas, anticoloniais, antipatriarcais"

Governos progressistas da América Latina seguem atados a lógica de exploração da natureza, diz o economista equatoriano Alberto Acosta. O ex-ministro de Correa propõe retomada de conhecimentos indígenas sul-americanos.

Por Marsílea Gombata, Opera Mundi
As promessas do desenvolvimento, que conquistaram o mundo a partir dos anos 1950, não se realizaram. E nunca se realizarão. Baseado em um sistema de exploração e desigualdades há décadas, o suposto progresso advindo do desenvolvimento é ilusório – quando não nefasto. É o que defende Alberto Acosta no livro “O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos” (Editora Elefante e Editora Autonomia Literária), que chega nesta semana ao Brasil.
O economista equatoriano, que foi ministro de Minas e Energia e presidente da Assembleia Constituinte do Equador entre novembro de 2007 e junho de 2008, resgata o conceito do Bem Viver – o sumak kawsay, que compreende princípios ecologistas e de sabedoria de povos em diferentes lugares do mundo – para propor uma quebra de paradigma na civilização atual, em prol da comunhão entre humanidade e natureza, longe do massacre de diversidades culturais imposto pela homogeneização do modelo ocidental.
Ao questionar o que é ser desenvolvido, ele lembra que, enquanto os países tidos como avançados praticam um mau desenvolvimento, os países da América Latina foram da euforia ao desencanto com o desenvolvimento, mas não lograram superá-lo. “O fato de o bem viver ter sido constitucionalizado não significa que é posto em prática”, afirma em entrevista a Opera Mundi, ao condenar a utilização do conceito como marketing político e dispositivo de poder por alguns líderes latino-americanos. “Na América Latina não há governos de esquerda nem governos que proponham uma mudança civilizatória. Não há governos anticapitalistas ou anticoloniais”, acredita.
A seguir, os principais trechos da entrevista:

Alberto Acosta foi ministro de Minas e Energia do Equador: "sou contra a megamineração por seus megaproblemas" O bem viver nasce dos ensinamentos dos povos indígenas e sua capacidade em resistir ao modelo colonialista por séculos. Mas hoje o mundo é outro, e fica difícil imaginar um modo de vida semelhante aos dos povos indígenas, por
Alberto Acosta foi ministro de Minas e Energia do Equador: «sou contra a megamineração por seus megaproblemas»

No livro o senhor explica que o bem viver “não pretende assumir o papel de um imperativo global, como sucedeu com o desenvolvimento em meados do século 20”, e que ele é “uma tarefa de (re)construção que passa por desarmar a meta universal do progresso em sua versão produtivista”. Afinal, como podemos definir o Bem Viver e incorporá-lo ao dia a dia de uma nação?
Quando falamos do Bem Viver estamos falando de construir uma vida em harmonia entre os seres humanos, vivendo em comunidade, com seus semelhantes e a natureza. Estamos falando de bons conviveres, ou seja, entre os seres humanos na comunidade, entre comunidades e entre indivíduos, comunidades e natureza. O Bem Viver, o sumak kawsay que emerge do mundo indígena, distancia-se de conceitos ocidentais que concebem o surgimento da vida política a partir de uma ruptura em relação à natureza. Dessa perspectiva, a tarefa é abrir a porta a transições que nos permitam construir outras formas de vida diferentes das atualmente dominantes.
O Bem Viver nasce dos ensinamentos dos povos indígenas e sua capacidade em resistir ao modelo colonialista por séculos. Mas hoje o mundo é outro, e fica difícil imaginar um modo de vida semelhante aos dos povos indígenas, por exemplo, nos grandes centros urbanos. Como fazer dialogarem povos da floresta e cidades?
O Bem Viver se apresenta como oportunidade para se construir coletivamente uma nova forma de vida. E isso implica copiar formas de vida indígenas. Sem dúvida, há muito a aprender com seus fundamentos, experiências e práticas. Comecemos por aceitar que os indígenas não são pré-modernos nem atrasados. No livro apresento algumas instituições econômicas próprias do mundo indígena que poderiam nos servir para replantarmos integramente a economia.
O senhor lembra que o Equador surpreendeu o mundo em 2007, quando propôs deixar no subsolo do Parque Nacional Yasuní entre 20% e 30% das reservas de petróleo do país. O abandono do projeto idealizado pelo senhor foi definidor para o rompimento com o governo de Rafael Correa?
A ideia é simples: não explorar o petróleo nos campos Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT), que se encontram no lado oriental do Parque Nacional Yasuní, na Amazônia equatoriana. Essa iniciativa foi sendo construída pouco a pouco na sociedade civil equatoriana, muito tempo antes de ser aceita por Correa em 2007. Surgiu como proposta de construção coletiva, emergiu da luta das comunidades amazônicas e indígenas e de colonos contra a [empresa petrolífera] Chevron-Texaco, assim como de propostas de vida como as de Sarayaku, uma comunidade indígena onde se pratica o Bem Viver.
Em 2005 se expôs a proposta de não explorar o petróleo do Yasuní, uma iniciativa que se baseia em quatro pilares: 1) proteger o território e a vida dos povos indígenas em isolamento voluntário; 2) conservar uma biodiversidade inigualável em todo o planeta; 3) cuidar do clima em todo o mundo, ao manter no subsolo uma significativa quantidade de petróleo, evitando a emissão de 410 milhões de toneladas de dióxido de carbono, 4) dar um primeiro passo no Equador para uma transição pós-petroleira e pós-extrativista, que teria um efeito em outras latitudes. Essa iniciativa marcaria a construção do bem viver que, insisto, não é uma simples proposta de desenvolvimento alternativo, mas uma alternativa ao desenvolvimento. Correa, ao carecer de uma clara estratégia política para cristalizar essa iniciativa, não foi capaz de tornar realidade essa proposta tão revolucionária, indispensável para garantir a vida dos seres humanos no planeta. Foram mais fortes os interesses petroleiros.
Pássaros à beira do rio Tiputini, no Parque Nacional de Yasuní, no Equador

Até que ponto incorporar o conceito do Bem Viver em sua Constituição fez o Equador dizer não ao desenvolvimento ou ao desenvolvimentismo? O senhor mesmo lembra que a Bolívia, mesmo com sua Carta de 2009 que outorga um posto importante à Pachamama [Mãe Terra], ficou presa às ideias clássicas do progresso, baseadas na defesa da industrialização dos recursos naturais.
O fato de o Bem Viver ter sido constitucionalizado não significa que é posto em prática. Para o governo de Rafael Correa e também para o de Evo Morales, o bem viver é um fator de marketing político e um dispositivo de poder. O caso da reserva Tipnis [quando indígenas se opuseram à construção de uma estrada que cortaria a reserva ecológica Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure] é tão simbólico na Bolívia quanto a iniciativa Yasuní-ITT no Equador. Em ambos os países a ampliação da fronteira petroleira, da mineração e dos agronegócios demonstra que esses governos não estão alinhados com visões do Bem Viver indígena.
O senhor foi candidato à Presidência do Equador em 2013, quando concorreu contra Correa e obteve cerca de 3% dos votos. Há planos de se lançar novamente na política?
Da política não sairei, é impossível. Todos os seres humanos, como dizia Aristóteles, somos animais políticos. Mas já não serei mais candidato. Estou convencido que posso ser mais útil em outros espaços. A política para ganhar eleições é a forma menos atraente de fazer política.
Antônio Cruz / Agência Brasil

Distrito de Bento Rodrigues coberto pela lama da barragem da mineradora Samarco, empresa da Vale e da BHP
OM: Recentemente, tivemos no Brasil um dos maiores desastres ambientais da história, com o rompimento de uma barragem destinada para mineração, que destruiu cerca de 160 casas na cidade de Mariana, em Minas Gerais. Apenas há poucos dias executivos das empresas Samarco e Vale foram indiciados. Em sua opinião, o que seria fazer justiça em um caso como esse?
AA: Acompanhei bem os detalhes desse desastre. A conclusão é simples: não há uma mineração sustentável e tampouco uma tecnologia de ponta que possa evitar os desastres como os experimentados em Mariana, no Golfo do México e em tantos outros lugares. É por isso que necessitamos de um exame consciente a nível social sobre a pertinência desses projetos que sempre são autoritários e verticais. A quem a mineração favorece? O que está por trás das concessões? Não posso me pronunciar sobre como deve atuar a Justiça brasileira, pois não a conheço. Mas, sim, acredito que esses casos devem abrir portas a sanções que possam ir para além dos lugares afetados. Deve-se estabelecer um precedente de alcance internacional, como o que se busca no processo no Equador contra a Chevron-Texaco [acusada de contaminar solo, rios e fontes de água na Amazônia equatoriana, além de causar doenças que levaram a 1.400 mortes], que dura mais de 20 anos.
OM: Além de presidente da Assembleia Constituinte, o senhor foi ministro de Minas e Energia do Equador. Em sua opinião, assim como o mercado de carbono, o setor de mineração deveria ter algum tipo de regulamentação?
AA: Pessoalmente sou contra a megamineração por seus megaproblemas. E me parece que o mercado de carbono também é uma das maiores aberrações, na medida em que amplia mais e mais a mercantilização da natureza e do clima. A mineração deveria ser regulada de maneira estrita. Não pode haver atividades mineradoras ou petroleiras em regiões próximas a fontes de água, em zonas de alta biodiversidade, em regiões com vestígios arqueológicos, em âmbitos onde um vazamento de mineração ou petroleiro pode afetar amplas extensões do solo e colocar em risco a vida humana. As comunidades, através da consulta prévia, são as que devem aceitar ou não atividades petroleiras ou de mineração, assim como projetos de hidrelétricas ou plantações monocultoras que igualmente têm implicações sociais e ecológicas graves.
OM: Na Amazônia brasileira, o que se vê é a destruição de territórios e povos originários em prol de um desenvolvimento questionável. Como o senhor enxerga a construção da usina de Belo Monte, a terceira maior do mundo depois de Três Gargantas (China) e Itaipu (Paraguai)? A posição do governo é a necessidade de geração de energia. Como gerar energia sem destruir?
AA: Antes de perguntarmos como gerar mais energia sem destruir, teríamos de nos perguntar para que e para quem se gera tanta energia. Muitas das grandes represas hidrelétricas no Brasil e no resto da região não estão orientadas para satisfazer a demanda energética da população, se não das crescentes atividades mineradoras, petroleiras, assim como do agronegócio e de monstros urbanos insustentáveis.
Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

Indígenas protestam contra usina de Belo Monte, em construção no rio Xingu, durante coletiva da presidente do Ibama, Marilene Ramos
OM: Em uma parte do livro o senhor fala sobre governos de esquerda na América Latina, que estariam embebidos em contradições. Como enxerga a esquerda latino-americana atual?
AA: Na América Latina não há governos de esquerda nem governos que proponham uma mudança civilizatória. Não há governos anticapitalistas, anticoloniais, antipatriarcais. São governos considerados “progressistas”, mas que seguem atados à lógica do crescimento econômico, da exploração e exportação da natureza. São, como vemos, governos empenhados em reduzir a pobreza, mas principalmente em modernizar o capitalismo. E, se começaram suas gestões se distanciado do neoliberalismo, já estão regressando a práticas neoliberais.
OM: Se o Bem Viver não se propõe a ser uma “filosofia abstrata”, a ideia é que seja um projeto para países da América Latina e do mundo?  Como e por onde começar?
AA: O Bem Viver se apresenta como oportunidade para construirmos coletivamente novas formas de vida. Não é uma receita escrita em alguns artigos da Constituição, como no caso do Equador e da Bolívia, nem a simples somatória de práticas isoladas ou o desejo daqueles que interpretam o bem viver à sua maneira. Em resumo, essas visões pós-desenvolvimentistas superam os aportes das conhecidas correntes heterodoxas, que na verdade enfocavam “desenvolvimentos alternativos”, quando é cada vez mais necessário gerar “alternativas ao desenvolvimento”. A tarefa não é nova. As lutas dos povos por sua emancipação têm uma longa história, por isso sempre estão começando de novo e de novo. O que devemos aceitar é que a solução não virá do Estado e menos ainda do mercado. Precisamos convocar o melhor do espírito emancipador da luta popular, assim como das propostas concretas de vida em comunidade. A partir do comunitário – urbano e rural – deverá se construir democraticamente um mundo onde caibam outros mundos, mas sem exclusão ou exploração de alguns deles. Como concluo em meu livro: ou o Bem Viver existe para todos e todas, ou não existe!

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