Na Europa e no Brasil, a democracia à mercê do interregno

União Europeia e Brasil vivem crises que diferem no particular mas que convergem, entre outros, no fortalecimento da direita e na desorientação das esquerdas, avaliam intelectuais de ambas realidades. Diante das crescentes polarizações, faz-se urgente reinventar o pensar e fazer políticos

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Protestos em Madri, maio de 2011 (Foto: Olmo Calvo)

Por Verena Glass
“Existe uma crise na Europa hoje, assim como existe uma crise no mundo. Mas a imprensa brasileira desde 2013 silencia sobre a crise no mundo para que a gente pense que é só aqui, uma crise fruto da má gestão do nosso governo”. Economista e historiador da USP, Jorge Grespan fez esta observação no âmbito de uma discussão sobre o estado geral da política e da economia em vários pedaços do mundo, que desde as suas dinâmicas locais debatem-se com questões cuja gravidade vem se tornando cada vez menos gestionável. Ou seja, uma agudização do que Antonio Gramsci constatou em 1929 frente às ameaças do nazi-fascismo: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

O disparador do debate – do qual participaram, além de Grespan, os filósofos Paulo Arantes e Isabel Loureiro (USP), o sociólogo Jean Tible (USP), o engenheiro e mestre em filosofia do direito Bruno Cava (Uninômade), e o sociólogo e economista alemão Alex Demirović (Goethe-Universität Frankfurt e Fundação Rosa Luxemburgo) – foi o lançamento, do livro “A Crise na Europa e o regime de acumulação com dominância financeira”. Demirović participou de dois eventos: na FFLCH/USP, com Arantes e mediação de Jorge Grespan, e na Fundação Rosa Luxemburgo com Cava, Tible e Grespan, mediado por Loureiro.

No cerne, a análise de uma Europa fragmentada e empobrecida, subordinada a uma (cada vez mais autoritária) política de austeridade, internamente polarizada diante da onda migratória de refugiados, tensionada por uma ascensão meteórica das direitas populistas, e cuja esquerda se vê paralisada e incapaz de reagir ou propor; e uma análise de um Brasil fragmentado e empobrecido, subordinado a uma (cada vez mais autoritária) política de austeridade, internamente polarizado diante da crise que atingiu o governo, tensionado por uma ascensão meteórica das direitas populistas e cuja esquerda tradicional enfrenta enormes dificuldades de reagir ou propor.

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Alex Demirović, Goethe-Universität Frankfurt (foto: Verena Glass)

No tocante à Europa, inicia Demirović, depois de estourar em 2008 nos EUA com a quebra do banco Lehman Brothers, a grande crise financeira se abateu sobre o continente – com especial força na Espanha, Portugal, Itália e Grécia – a partir de 2009.  Disso resultou uma intensificação do autoritarismo na adoção de medidas pró-austeridade antidemocráticas para dirigir a política econômica dos países mais afetados, com o controle das economias domésticas pela Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
A crise financeira levou a políticas de austeridade, que levaram à redução nos orçamentos, que levou a uma paralisação dos investimentos em infraestrutura e à deterioração das políticas de bem-estar social. Como resultado, a população europeia está empobrecendo, ao mesmo tempo em que educação e formação se fragilizam. E é neste cenário que, no período mais recente, chegam os refugiados; aos milhões.
A relevância do elemento refugiados na análise da crise europeia – uma crise múltipla, econômica, política, social, ambiental e humanitária – se deve ao fato de que a nova onda de migrações levou à uma agudização do já pulsante reacionarismo tanto da classe política quanto da popular, fruto ou resposta ao mencionado empobrecimento (econômico e espiritual) e às políticas de austeridade. “Os movimentos reacionários se colocam como defensores do ocidente contra a imigração islâmica, preconizam que o que está em jogo são os valores ocidentais cristãos, e transformam a situação em uma guerra cultural e civilizatória; o cristianismo contra o islã, o ocidente contra o oriente”, diz Demirović.
Isso cria um ambiente polarizado que atinge todas as questões sociais, levando a própria unidade regional a um estado limítrofe. “Diante da crise dos refugiados, nos vemos em uma situação onde os países da União Europeia (UE) trabalham uns contra os outros, porque os Estados Nacionais aplicam políticas muito distintas. Assim que a questão acerca da dissolução da UE ou da zona do Euro se transformou numa pergunta crucial”, avalia. Sobretudo para as esquerdas.
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Refugiados sirios enfrentam repressão na fronteira entre Macedônia e Grécia (foto: Freedom House)

Ou seja, prossegue o sociólogo alemão, o euro é visto como uma prisão política, e o Banco Central Europeu é o carcereiro. A economia política do capital, como disse Marx, é como uma máquina de anulação da perspectiva socialista. “Sobre esta questão, a tensão na esquerda europeia ficou muito clara. A esquerda na Europa e no Parlamento Europeu está dividida, no sentido de que há uma facção que rejeita radicalmente a União Europeia e a zona do euro, e outra que imagina que poderia se criar um keynesianismo nacional e europeu. Ou seja, um Estado Social Europeu”.
Mas há também uma terceira corrente, composta por vários movimentos sociais – como as plataformas municipalistas e o Plano B na Espanha, o Blockupy na Alemanha, o DIEM 25 do ex-ministro grego Yanis Varoufakis, entre outros – cuja perspectiva é uma nova constituição da Europa a partir de um novo movimento de baixo, uma vez que a UE estaria se tornando um aparato autoritário com vistas a apenas gerir a crise. Fenômeno muito familiar aos brasileiros.
Gerentes de crise
A gestão da crise como forma de governo é uma das inovações que aproxima as conjunturas da Europa e do Brasil no último período. Sendo que o Brasil vive a crise da gestão da crise, pondera o filósofo Paulo Arantes. Na sua opinião, em tese a crise seria um fenômeno dramático que exige um desfecho – que, no caso da atual situação política brasileira, será um desfecho no plano do grotesco e absolutamente não uma mudança de cenário. “Esta crise está aí há algum tempo, desde os anos 1980, com a chamada crise da dívida. De lá pra cá houve um rearranjo estrutural destrutivo no Brasil, que foi gerido. De certa maneira, a disputa no Brasil foi em torno da gestão desta crise, que obviamente não tem solução, assim como na Europa”.
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O filosofo Paulo Arantes, da USP (foto: Verena Glass)

Ou seja, pondera o filósofo, se a oposição defenestrar o gestor ou poder incumbente da gestão da crise no Brasil, não haverá mudança. “Os dois lados só sabem fazer a mesma coisa, que pouco difere. Ninguém inventou nada de novo na gestão tucana, assim como na que a sucedeu. Tudo se passa aqui como se fosse um conflito entre dois gigantes, de um lado os neoliberais e do outro os desenvolvimentistas, mas isso é uma grande falácia”.
Assim, o dramático é que ninguém está pensando em alternativas, e o próprio keynesianismo, sobrevalorizado por boa parte das esquerdas, é também uma gestão de crise permanente, pondera Arantes. Nesse sentido, constata o sociólogo Jean Tible, as velhas fórmulas da esquerda estão sendo colocadas em cheque, incluindo-se a política partidária ou a sindical. Por outro lado, mesmo as experiências mais recentes de chegada ao poder, como o da coligação da esquerda radical no partido grego Syriza – que se prontificou a governar, a ser poder, e para isso contou com o apoio dos movimentos sociais – não logrou manter a resistência contra as forças conservadoras da UE e suas políticas de austeridade.
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Da esquerda para a direita: a tradutora Claudia Dornbusch, Alex Demirović, Isabel Loureiro, Gerhard Dilger, Bruno Cava, Jean Tible e Jorge Grespan (foto: Gerhild Schiller)

O desafio das esquerdas
É diante deste quadro que Gramsci volta a ser incomodamente atual, pontua Bruno Cava. Para além das crises na Europa e no Brasil, ele lembra que é preciso considerar também o desmoronamento do progressismo ou do socialismo do século XXI, como gestados na Venezuela, Bolívia ou Equador. “Precisamos discutir se esse fim do progressismo é também um desmoronamento da esquerda de composição de classes. Acho que há a possibilidade do fim da esquerda como a conhecemos, e que outra coisa terá que aparecer. Assim como no Leste Europeu uma outra coisa teve que aparecer depois da queda do Muro de Berlim. Como disse Gramsci, a crise se torna mais aguda quando o velho já morreu, mas o novo ainda não nasceu. Estamos nesse momento de mortos-vivos”, avalia Cava.
Isto não significa que movimentos e iniciativas de esquerda desapareceram ou foram paralisados. As mobilizações da chamada Primavera Árabe e do movimento Occupy Wall Street no início da década adquiriram uma dimensão global e sugeriram formas de atuação distintas que se alastraram pelo mundo. Na Europa, como resposta ao austericismo – e a consequente precarização social – da Comissão e do Banco europeus, surgiram movimentos de resistência como o 15M e os Indignados na Espanha, Solidarity for All na Grécia, uma série de movimentos autonomistas na Itália, greves na França, protestos na Croácia e Eslovênia, bem como forças políticas como as plataformas municipalistas e o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia. A inspiração Occupy se manifestou na Turquia, na Ucrânia ou em Hong Kong; e também no Brasil, principalmente em 2013.
Os levantes libertários e os movimentos de defesa de direitos civis que inspiraram uma nova formulação de esquerda, no entanto, foram confrontados por reações diversas. Tanto a Europa como o Brasil viram surgir, paralelamente ao fortalecimento do movimento anti-racismo, feminista, de gênero ou de solidariedade com migrantes, grupos e políticos xenófobos, racistas ou anti-LGBT, lembra Demirović.  “No verão em que na Espanha os indignados ocuparam a Porta do Sol, ocorreu o assassinato de 69 membros da juventude socialista na Noruega. O assassino, o ultradireitista Anders Behring Breivik, esclareceu a motivação: era contra o socialismo, contra a ideologia de gênero e contra a islamização da Europa”.
Por outro lado, pondera Bruno Cava, as opções da esquerda clássica governamental – aderente, em menor ou maior grau, ao progressismo latino-americano -, também levaram a choques. Segundo ele, a partir de 2008 o Brasil viveu uma inflexão desenvolvimentista mais profunda, relacionada à crise, mas também à explosão da demanda chinesa por matérias primas. “É mais do que o Consenso das Commodities e o extrativismo, é a substituição do Consenso de Washington pelo Consenso de Pequim, uma nova matriz econômica e de desenvolvimento que envolve governabilidade, conglomerados que financiam campanhas, um arranjo político e econômico estatal”.
Nos últimos anos, em função do projeto desenvolvimentista que incluiu megaobras e megaeventos, houve no Brasil uma intensificação dos investimentos federais nos estados, e carta branca aos governos locais para fazer a remoção dos favelados, impor os choques de ordem; ações ligadas à gentrificação das cidades, e associadas a uma hipervalorização imobiliária e à extração de mais valor a partir dos territórios.
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Repressão a protesto contra a demolição de casas da Comunidade do Metrô, RJ (foto: Tania Rêgo)

Em junho de 2013, quando as ruas em todo o Brasil foram tomadas por protestos, o Rio de Janeiro se destacou pela violência da repressão, afirma Cava. Em referência ao atual momento crítico do país, ele considera que “para nós, o golpe aconteceu quando, depois de uma manifestação em junho de 2013, o Bope subiu a favela da Maré e matou 10 pessoas. Dezenas de coletivos foram incluídos no inquérito da Operação Firewall; foram centenas de mandados de busca e apreensão, prisões, paranoia generalizada que não deixava ninguém dormir. Não era medo do japonês da federal, era da polícia mais violenta do Brasil que batia na sua porta. O céu se abateu sobre nossas cabeças, e esse céu tem um rótulo de progressismo. É isso que temos que analisar. Não a vitória do neoliberalismo, a traição do PT; temos que analisar o que foi o projeto do progressismo. Porque fomos reprimidos pela direita, mas também pela esquerda”.
A grande questão, o “diante de tudo isso, o que fazer?”, para Paulo Arantes continua desafiadora. “O que fazer não falta”, provoca. “Só não sabemos reconhecer quando se encontra, porque estamos habituados às grandes alternativas macro-históricas, o dobrar a esquina da história. Não vamos mais dobrar a esquina da história, isso é claro”.
Já Demirović aponta um amplo aprofundamento da democracia como fator vital para o futuro. “Na Europa muitas pessoas estão convencidas de que a democracia, a participação política, não fazem mais sentido. O populismo de direita preconiza que o fazer e decidir sejam cedidos a poucos políticos, incumbidos de agir em nome do povo.
Na minha opinião, porém, não temos nenhuma outra saída a não ser nos aproximarmos das pessoas e esclarecer que elas têm que agir por responsabilidade própria. Que não existe alternativa que não o se responsabilizar, perante si mesmo, no agir político.
Nas crises a tendência é dizer que não havia como prevê-las. Mas isso é falacioso: foram as decisões dos representantes no poder que suscitaram estes processos. A humanidade acumulou riquezas que poderiam ser organizadas de forma totalmente diversa do corrente. Se 1% tem a mesma riqueza que outros 50% da humanidade, então o socialismo deveria ser factível amanhã. A pergunta é: por que não o fazemos?”

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