"Não tivemos projeto que não fosse a adaptação do capitalismo"

Em conversa com a Fundação Rosa Luxemburgo, o padre marxista comenta a acomodação das esquerdas e dos governos progressistas da América Latina às modernidades capitalistas, avalia a funcionalidade da luta armada e defende horizontes que incluam a crise ecológica no pensamento político

houtart
François Houtart na Fundação Rosa Luxemburgo

Por Christiane Gomes, Daniel Santini, Gerhard Dilger e Verena Glass
François Houtart é um dos expoentes de um seleto grupo de pensadores que, para além das vastas leituras, conheceram o mundo por experiência. Hoje com 91 anos, o padre e sociólogo marxista belga era um adolescente de 14 anos quando explodiu a Segunda Guerra Mundial, período em que, na Juventude Católica Operária, iniciou sua longa trajetória de atuação junto à classe trabalhadora e a movimentos sociais nos quatro cantos do mundo.
Como certa vez comentou Frei Betto, a diferença entre Deus e François Houtart é que Deus está em toda parte, e François esteve (conta, rindo, o próprio). Além da Europa, Houtart atuou em países como África do Sul, Bangladesh, Camarões, Coreia, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Malta, Tailândia, Sri Lanka, Paquistão, Tanzânia, Vietnã e Zaire, além de diversas nações da América Latina e do Caribe.
Licenciado em Filosofia e Teologia em Malines em 1949, tem pós-graduação em  Ciências Políticas e Sociais na Universidad de Lovaina em 1973, e diplomou-se no Instituto Superior Internacional de Urbanismo  Aplicado  em  Bruxelas.  Ainda na década de 1950, foi fazer um doutorado nos EUA e, em 1953, esteve pela primeira vez em Cuba, para trabalhar com a juventude católica do país.
Após concluir os estudos nos Estados Unidos, passou seis meses na América Latina,  “o que para mim foi uma descoberta extraordinária porque conheci os países desde baixo, não de cima”.  Foi nesta época que, na Colômbia, conheceu o também padre católico, sociólogo e revolucionário Camilo Torres que, anos depois, juntou-se ao grupo guerrilheiro Exercito de Libertação Nacional  (ELN) e foi assassinado em fevereiro de 1966.
A partir destas primeiras experiências na América Latina, Houtart seguiu acompanhando e aprofundando seus estudos sobre os diversos processos de construção das esquerdas na região. Hoje vive em Quito, no Equador, e dedica grande parte do seu tempo a atender demandas de movimentos e organizações sociais e acadêmicas para contribuir com processos de reflexão que ajudem na compreensão do mundo e dos horizontes possíveis a partir dos pensamentos de esquerda.
A seguir, leia trechos da entrevista concedida por Houtart à Fundação Rosa Luxemburgo em 13 de outubro, quando analisou a situação política da América Latina e os desafios das esquerdas na região.
Você conheceu a América Latina em um momento em que começavam a se conformar vários movimentos revolucionários na região. Por exemplo na Colômbia, onde você foi muito próximo de Camilo Torres. Quando ele decidiu aderir ao grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional (ELN), vocês ainda estavam em contato?
Sim, evidentemente. Discutimos sobre o assunto, e eu não estava muito de acordo com suas opções porque, pensava eu, para a Colômbia um Camilo vivo seria mais importante do que um Camilo morto. Tratei de conseguir para ele uma bolsa de estudos no momento em que formava a Frente Unida[1], um movimento extraordinário que provocou uma forte reação da burguesia colombiana. Me lembro da última vez que o vi; me contou que não podia dormir duas noites no mesmo lugar porque estava com a cabeça a prêmio. Eu lhe disse: “Camilo, achamos uma bolsa de estudos para você para que faça o seu doutorado e tome um pouco de distância da situação”. Mas ele me dizia: “Não, não posso, porque, se saio da Colômbia, iria decepcionar as pessoas que depositaram sua confiança em mim. Não posso”. Em 1965 eu estava em Nova York e achei outra bolsa para ele; decidi voltar para Bogotá, para falar com Camilo novamente. Mas cheguei cinco dias tarde demais porque ele já havia partido para as montanhas. E seis meses depois foi assassinado.
E como você vê a situação da Colômbia hoje, em meio às tentativas de selar a paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)?
Bom, ontem (12 de outubro) estive na Colômbia na marcha pelo processo de paz. Havia um número enorme de indígenas de todas as regiões do país, e me pediram que falasse na Praça Bolívar. Falei umas poucas palavras de solidariedade dos povos do mundo com eles. O que considero evidente é que o processo de negociação para por fim à guerra aberta temos que apoiar de todas as formas. Mas sabendo que o fim da luta armada não significa o fim da luta social. E que a burguesia colombiana é talvez a mais culta – e também uma das mais cínicas – da América Latina, que vai usar todos os mecanismos disponíveis para reproduzir sua hegemonia na sociedade. O processo de paz é uma das armas da burguesia, devemos saber disso – o que não impede de ver que é um passo absolutamente necessário. Porque o tempo da luta armada passou, por agora.
Também tive uma conversa com o ELN, que está começando o processo de paz. Acho que, quando Camilo entrou para a guerrilha, isso poderia ser legítimo. Mas há três condições para dar legitimidade à luta armada: a primeira é que seja o último recurso, que não haja condições de diálogo. E claro, há 50 anos, era assim. Segundo, que haja possibilidade de êxito. Há 50 anos se podia pensar que seria possível transformar a sociedade com a luta armada. E, terceiro, que não seja necessário usar métodos antiéticos. Estas três condições mudaram durante o processo. Nos últimos 25 anos já havia condições de negociação, e não havia possibilidade de êxito político pelas armas em função da correlação de forças. E por fim, começou-se a utilizar métodos que não podemos aceitar, como o narcotráfico, os sequestros etc.
Estamos em outra época; o que não significa que um dia, no futuro, se as coisas na América Latina seguirem como estão agora – principalmente diante das crises nos países progressistas -, a luta armada não seja legítima outra vez: se os regimes de direita se reorganizarem e utilizarem os mesmos métodos que conhecemos  no passado; se as forças progressistas se transformarem mais e mais em forças social-democráticas; se a esquerda se transformar em Viagra do capitalismo senil; se não houver forças políticas que sejam a expressão dos movimentos sociais. Mas penso que não vale a pena discutir o assunto no momento, porque é uma hipótese do futuro.
Diante das crises que você menciona – dos governos progressistas, do fortalecimento das forças conservadoras –, o que vemos é um processo crescente de resistências, mas nos faltam estratégias novas para os movimentos, para as esquerdas, de propor e construir novos horizontes. Como você avalia esta conjuntura?
Este ano, fui convidado pela Frente Farabundo Martí (FMLN) a participar da reunião do Foro de São Paulo em El Salvador. Antes ia muito mais a estas reuniões, mas depois tomei uma certa distância porque me parece que a evolução do Foro estava cada vez mais social-democrata e menos de esquerda. Mas, diante da crise mundial e das crises das esquerdas, amigos me convenceram a ir este ano. E me decepcionei muito. Havia 100 partidos e organizações de esquerda de toda América Latina e nenhum discurso novo, era a mesma ladainha de 20 anos atrás, uma impossibilidade de autocrítica, só a repetição de slogans. “Devemos apoiar a Dilma, devemos apoiar o Lula, o Daniel [Ortega], o Rafael [Correa], o Maduro etc”. Ok, de acordo, mas isso não é uma solução. Nem uma visão para o futuro. Ultimamente, quando estive no Brasil com o PT, meses atrás, disse que não tinha vindo para dar lições mas para ajudar a refletir. Disse que diante da crise no Brasil – mas também em outras partes –, é preciso refundar a esquerda. Não devemos acusar pessoas, mas analisar o problema como um problema do sistema. Também não quero falar de ciclos – se falava em fim de um ciclo –, porque não penso que é um conceito adequado porque tem um caráter demasiadamente determinista. Não me parece adequado que aceitemos a ideia de ciclos como alternância: alguns anos manda a esquerda, outros, a direita. Porque se realmente queremos mudar uma situação estrutural, não podemos permitir que a direita volte ao poder. Temos que lutar por uma possibilidade de transformação estrutural, e temos que nos dar conta que as experiências da esquerda se esgotaram.
As experiências latino-americanas foram muito importantes porque foram as únicas pós-neoliberais no mundo. Não houve nada assim nem na Europa, nem na África e no mundo árabe com suas primaveras, nem nos EUA ou outros continentes. Mas foram experiências pós-neoliberais, mas não pós-capitalistas. Dilma mesmo defendeu a aliança com o mercado. Isto, no entanto, não é um problema de pessoas, chefes de Estado, mas do sistema. Acontece no Equador, na Bolívia, na Argentina, no Brasil, mas também na Venezuela ou na Nicarágua.
Por isso é importante fazermos a autocrítica, o que é muito difícil porque sempre nos deparamos com a autodefesa. No Brasil, meses atrás, em reunião com o PT, uma parte dos dirigentes dizia: “Não, não, lutamos contra o capitalismo e contra a pobreza. Tantos milhões de pessoas saíram da pobreza”. E minha resposta foi: “Isso não é anticapitalismo. Porque o Banco Mundial também tem como objetivo a luta contra a pobreza. Luta contra a pobreza porque isso permite a mais gente o acesso ao mercado, permite a mais gente consumir; e isso é excelente para o capitalismo”.
Você entende então que talvez a força das esquerdas seja catalisada quando está na oposição? Por que quando está no poder, quando se ocupa prioritariamente da lógica eleitoral, é mais complexa a construção de um projeto? Qual foi o projeto das esquerdas nos últimos 15 anos na América Latina?
Desde o princípio não tivemos um outro projeto que não fosse o de adaptação do capitalismo a outras demandas lógicas ou culturais. Nunca houve uma base fundamentalmente anticapitalista, e temos que analisar as razões. As posições antineoliberais foram reais. Reestabeleceu-se o papel do Estado em alguns aspectos sociais, sobretudo de luta contra a pobreza e de acesso a serviços públicos. Houve investimentos em projetos infraestruturais, como estradas, no Equador, onde vivo. Mas isso foi realizado mediante uma concepção de Estado muito jacobino, centralizado, relativamente autoritário e com líderes carismáticos que tiveram a tendência de perpetuação para cumprir as tarefas do pós-neoliberalismo.
Isso produziu ganhos reais, não podemos negar que milhares de pessoas saíram da pobreza. Mas isso não necessariamente é resultado de uma política pós-capitalista. Porque outros países da região, como México, Colômbia ou Chile, também tiveram lutas contra a pobreza, e às vezes mais eficazes. Mas claro, são avanços. O Equador de hoje não é o mesmo de 54 anos atrás. É muito melhor que antes, mas essa experiência já se esgotou. Principalmente diante da crise internacional das commodities, das matérias-primas.
A América Latina, assim como a África, sofreu um processo forte de reprimarização da economia e de uma relativa desindustrialização. Isso elevou a importância da região no mercado global. O resultado imediato foi que, quando a crise baixou o preço das commodities, isso afetou todo o continente e em particular os países progressistas, que tinham aproveitado a alta das matérias-primas para financiar suas políticas sociais. Por isso digo que estamos diante do esgotamento deste modelo.
Mas, em países como Bolívia e Equador, por exemplo, não houve uma tentativa de construção de um novo paradigma político, que, na teoria, incorporou conceitos como o direito da natureza? Como você avalia a proposta do Bem Viver, incluída nas constituições dos dois países? O que é o Bem Viver para você?
É uma visão que considera o conjunto da realidade. Por exemplo, o crescimento econômico de tipo capitalista não considera as “externalidades”, o que é externo ao cálculo de mercado, como os danos ecológicos, sociais e culturais. O Bem Viver não demanda que adotemos a cosmovisão particular dos povos indígenas. Sim, o conceito de Pachamama, a Mãe Terra, isso sim; não que ela seja um organismo que se enraivece quando é ferida, mas sim que todos os elementos da natureza são nossos irmãos. Isso como visão simbólica é extraordinário, São Francisco de Assis tinha essa visão. Mas adotar o Bem Viver não significa que precisamos adotá-la. Significa que precisamos retomar uma visão holística da realidade, uma visão de realidade não segmentada como a adotada a partir do iluminismo, com seu desenvolvimento científico e tecnológico extraordinários que, no entanto, dividiu a realidade. Porque permitiu ao capitalismo de mercado impor suas leis ao conjunto da sociedade, não só nos aspecto econômico mas também política e culturalmente.
Assim, recuperar uma visão holística, uma visão completa da realidade, é essencial. Mas os governos que vocês citam, preocupados com problemas imediatos a resolver, adotaram o conceito do Bem Viver, mas não o conteúdo do conceito. No Equador, no primeiro mandato de Rafael Correa, era a base do discurso. Mas na prática, o que mandava era a visão desenvolvimentista. Criou-se uma enorme distância entre o discurso e as práticas, o que vemos muito nos países progressistas, que tem constituições magníficas, com garantias dos direitos da natureza e etc. Mas e a aplicação?
Como você avalia movimentos sociais e suas relações institucionais com o poder? Como você lê seus posicionamentos ideológicos?
A princípio, a maioria dos movimentos sociais apoiou totalmente os governos progressistas, mas depois pouco a pouco se distanciaram, porque as políticas reais não se conciliavam com suas aspirações. Mas qual é a referência destes movimentos? É uma referência que se baseia no passado ou corresponde à realidade atual? Penso que estão entre os dois. Temos que entender por quê. Uma parte destes movimentos ainda mantém um discurso repetitivo, repetem os slogans do passado, sobre o papel da classe trabalhadora etc. Mas o que é a classe trabalhadora? A destruição do trabalho pelo capitalismo moderno, por um lado, mas também a defesa dos ganhos que o capital traz pelas organizações dos trabalhadores, por outro, nos impede de termos um futuro diferente. A classe trabalhadora tem sua importância, mas há outras forças, como os movimentos do campo. No âmbito internacional o movimento camponês tem sido mais forte que o trabalhista. Eu me lembro que, no Fórum Social Mundial em Belém (2009), falávamos de condenar o capitalismo. Mas os sindicatos europeus se opuseram ao uso da palavra “capitalismo”, se negaram a falar de capitalismo.
Como redefinir todas as forças que lutam contra o capitalismo? Não é mais apenas a classe trabalhadora. Então, há uma repetição de um discurso que não corresponde mais à realidade. Isso pode ser um problema quando falamos em refundação. Ou seja, redefinição da metas. Que tipo de sociedade queremos? Como utopia não no sentido de ilusão, e sim de algo que ainda não existe, mas pode vir a existir? Ainda, como podemos pensar na transição? Porque, evidentemente, diante da correlação de forças internacionais, não podemos pensar em criar um sistema socialista instantâneo.
Mas, sim, podemos pensar em transições, em todos os aspectos da realidade; desde a agricultura camponesa às políticas fiscais; e devemos ver quais forças, atores, podem implementar esse projeto, em função da experiência dos movimentos sociais e políticos.
Recentemente, seu amigo Samir Amin, um dos grandes pensadores marxistas da atualidade, esteve em Berlim falando do outono do capitalismo e da primavera dos povos. Para ele, na perspectiva histórica, o capitalismo seria uma etapa muito curta na humanidade, e a crise é tão grande que é possível que seja derrubado. Você concorda?
Sim, mas a partir da compreensão de que não vai ser amanhã que o capitalismo vai cair por si só, temos que continuar com as lutas sociais, evidentemente. Mas há contradições fundamentais que Samir, como marxista, tem certa dificuldade de compreender, como o fato de que a crise é também ecológica. Que os limites da destruição da terra são extremamente importantes e que devem ser integrados à análise teórica. Isso está apoiado em Marx, quando ele justamente fala da destruição do equilíbrio entre seres humanos e a natureza. Marx já estabeleceu, penso eu, as bases teóricas do ecossocialismo. Mas este nunca foi desenvolvido nem pelos intelectuais e muito menos pelos governos comunistas ou socialistas.
Por que é tão difícil para a esquerda latino-americana – mas também a europeia – de incorporar o ecossocialismo? Não se trata de uma coisa nova, nos anos 1980 era bastante presente. Então, por que desapareceu do horizonte de grande parte das esquerdas?
Porque ainda existe essa concepção clássica de modernização. Modernizar é industrializar. Quando se fala em ecossocialismo, reagem imediatamente dizendo que é um complô dos países industrializados contra os países da periferia para impedir seu desenvolvimento. Vemos o exemplo da China: mais de um milhão de chineses morrem por ano por problemas de poluição do ar. Ou contaminação da água. Isso é modelo de desenvolvimento? É a mesma lógica dos maias e dos astecas, que faziam sacrifícios humanos para ter uma boa colheita. Nesse sentido, sou um pouco mais crítico que Samir Amin, que tem muita proximidade ao projeto chinês, porque vejo o que acontece lá, e no Vietnã, que segue o mesmo modelo. É um retorno ao capitalismo selvagem, que tem resultados sociais bastante negativos mas ao mesmo tempo não é a mesma coisa que o capitalismo ocidental.
Nos últimos anos vem tomando corpo, em alguns círculos de esquerda, o conceito de “comuns”, que se aproxima ao comunitário, ao autogestionado, e que também está presente nos horizontes do Bem Viver. O que para você são os “comuns”? Esse conceito poderia desafiar o capitalismo que temos hoje?
Penso que temos que ser prudentes, porque há uma certa tradição de regresso a um passado que não existe mais. Há o perigo de nos concentrarmos sobre fórmulas que já não correspondem a realidade. Por outro lado, há essa ideia de recuperar os commons, a ideia do comum, e diante de todos os processos de individualização das vida econômica, política, social e também cultural, é um passo muito importante.
Foto: Gerhard Dilger
[1] Em meados dos anos 1960, liderado por Camilo Torres, a Frente Unida foi um movimento de massas de oposição ao sistema e ao processo eleitoral que se aproximou da nascente organização guerrilheira Exército de Libertação Nacional (ELN).

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