Aos 150 anos, "O capital" ainda dá respostas

Por ocasião do lançamento do livro Mais Marx no Brasil, um guia para leitura e formação política sobre a principal obra de Marx, a filosofa Antonella Muzzupappa, da Fundação Rosa Luxemburgo de Berlim, fala de sua atualidade e do «Renascimento Marx» no mundo
Por Verena Glass

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Antonella Muzzupappa em São Paulo: formação para formadores

Quando Antonella Muzzupappa resolveu deixar, aos 18 anos, a cidade natal de Napoli, na Itália, para estudar na Alemanha, tinha grandes expectativas. Militante de esquerda, achava que, na terra de Marx, encontraria um ambiente rico em debates e reflexões marxistas; mas não foi bem assim. Após a queda do Muro, o mundo acadêmico alemão, constatou, pouco discutia as obras e as teorias de um de seus maiores pensadores, apesar do interesse – principalmente por O capital – entre as novas gerações. Um vazio teórico que a hoje doutora em filosofia busca compensar de outras formas.
Atualmente responsável pela cátedra de Economia Política no setor de pesquisa política da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim, Muzzupappa tem coordenado um processo intensivo de formação sobre marxismo e O capital, dado o crescente interesse no aprofundamento do tema. “Como as pessoas não encontram o debate sobre marxismo na academia, estão procurando outros espaços. Atualmente promovemos de quatro a cinco grupos de estudos paralelos sobre O capital na Fundação, e percebo que a demanda vem crescendo”, explica.
Para atender a essa demanda, e para apoiar a multiplicação de cursos e processos formativos, em parceria com Valeria Bruschi, Sabine Nuss, Anne Steckner e Ingo Stützle, a pesquisadora produziu uma publicação multimídia que pretende apoiar os estudos do primeiro livro de O capital, que na Alemanha apareceu com o nome de Polylux Marx (Polylux é um retroprojetor para apresentação de transparências, muito usado na RDA antes do adventos dos modernos datashows).
No Brasil, editado em parceria da editora Boitempo com a Fundação Rosa Luxemburgo, o livro, com o nome de Mais Marx, acaba de ser lançado esta semana em São Paulo com a presença de Muzzupappa, que realizou uma oficina de formação para professores e lideranças de movimentos sociais na Fundação Rosa Luxemburgo, e um debate promovido pela Boitempo e pelo departamento de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP com o sociólogo Ruy Braga e o economista Jorge Grespan.
Mas qual a importância de ler O capital hoje, 150 anos após seu lançamento? Na entrevista a seguir, Muzzupappa dá algumas pistas.

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Publicado em 1867, «O capital» está fazendo 150 anos

Porque estudar Marx hoje em dia?
Eu entendo que, sobretudo através de O Capital, temos a melhor base para entender o sistema capitalista. É uma análise muito concreta sobre como funciona a sociedade na qual vivemos. Claro que não podemos explicar tudo através de O capital, todos os detalhes de tudo que ocorre, mas é possível entender como funciona o sistema, e encontrar os pontos a serem criticados e onde é preciso modifica-lo.
Como o pensamento de Marx, elaborado ainda no século XIX, na Europa, em um tempo e lugar tão distintos, pode dialogar com a realidade brasileira, com o povo brasileiro hoje, por exemplo?
Bom, o Brasil é parte do sistema capitalista. Então O capital dialoga, de alguma forma, com a realidade do país; se não diretamente, ao menos indiretamente. Essa é um pouco a força desse livro, que é tão abrangente que aponta como funciona o capitalismo tanto faz quando e tanto faz onde. Isso torna O capital tão atual, porque não descreve o capitalismo na Inglaterra no século XIX, é uma análise do mecanismo de funcionamento. Então enquanto persiste esse mecanismo, e você é parte disso, você pode encontrar nesse livro alguns caminhos, independente se você está no Brasil ou na África. Claro que há a critica de que toda a visão de Marx é extremamente eurocêntrica, e isso está correto em relação a alguns de seus escritos. Mas acho que isso não se aplica à análise de O capital e sua discussão do sistema.
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Formação na FRL: membros do cursinho Uneafro, contra o ensino privado

O capitalismo avançou muito desde a época de Marx. As relações de trabalho mudaram, hoje se vendem créditos de carbono, serviços ambientais, “mercadorias” intangíveis que há pouco tempo nem existiam. Esse novo capitalismo pode ser trabalhado na teoria marxista?
Existe muita coisa intangível no capitalismo. Com O capital também não se pode explicar diretamente o Fordismo, por exemplo; eram outros tempos. E assim pode surgir a pergunta: este livro [O capital] ainda serve para alguma coisa, uma vez que temos um modo de produção capitalista tão distinto hoje?
Claro que o capitalismo se modifica, mas o que não muda é a lógica. O capitalismo visa o lucro, a maximização do lucro, e a transformação de tudo em mercadoria, inclusive o intangível. O que é mercadoria e pode ser vendido, isso se expande, e cada vez mais. Alguns serviços providos pelo Estado, o chamado welfare, saúde, educação, não eram uma mercadoria durante um período. Ao menos nos países ocidentais esses serviços eram prestados pelo Estado. Agora ocorrem as privatizações, que cada vez mais transformam os commons em mercadoria, seja a água, seja saúde ou outras coisas.
Agora, ao que você se refere, os bens intangíveis, encontramos esse debate no terceiro livro de O Capital. Não as especificidades, mas a movimentação do capital financeiro, conceitos como capital fictício, e podemos explicar ao menos a lógica, quando não os detalhes do que ocorre hoje. Um pouco temos que fazer nós, Marx não foi capaz de antever tudo, e essa é exatamente a nossa tarefa, trilhar o caminho da base teórica, muito sólida para ajudar nas análises e nas críticas, para as questões concretas atuais. Acredito que isto é possível, e que sem essa base estaríamos bastante perdidos diante dos diversos desenvolvimentos do capitalismo.
E como você vê o interesse geral pela leitura de Marx atualmente? Tem crescido?
De modo geral, na Europa – e especialmente na Alemanha -, desde a explosão da crise global de 2008, que começou com a crise imobiliária nos EUA, passou à crise financeira, crise do crédito, crises das dividas públicas, até a crise do Euro, desde então se fala até de um renascimento de Marx, uma renaissance Marx, que acontece em dois patamares. O primeiro é a volta do interesse de muitos jovens por Marx, principalmente por O capital; e o segundo é a esfera midiática, do debate público, principalmente agora, nos 150 anos d´O capital e o aniversário de 200 anos de Marx. Na Alemanha, jornais como Die Welt ou Die Zeit produziram dossiês sobre a questão: Estaria Marx realmente certo? Ou seja, até a imprensa burguesa trata dessa questão, provavelmente, ao que parece, porque as linhas teóricas disponíveis meio que fracassaram nos últimos anos. A economia mainstream, os neoclássicos, eles não conseguem explicar essa crise, não esperavam esta crise, nem que ela durasse tanto. Então acredito que as pessoas estão procurando explicações em outras direções.
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Em palestra na USP, Antonella apresenta o livro Mais Marx

Por outro lado, principalmente na Alemanha, há o fenômeno que Marx desapareceu completamente das universidades. Depois da queda do Muro de Berlim, os professores que antes discutiam o tema foram se aposentando, assim que hoje quase não temos acadêmicos marxistas nas universidades, a cátedra não é oferecida. Mas o que percebemos, principalmente na Fundação Rosa Luxemburgo, é que as pessoas então procuram outros espaços de formação. Desde 2006, nós oferecemos cursos de formação sobre O capital, e naquela época tínhamos grupos pequenos, 20 a 30 pessoas. Hoje oferecemos de 4 a 5 cursos concomitantes na Fundação em Berlim. O mesmo em Bremen, Frankfurt, Colônia, Hannover, etc. Existe uma demanda, falta oferta, e acabamos recebendo cada vez mais pedidos para formações em outros formatos, como seminários de fim de semana, etc. Ou seja, cresce a percepção de que se pode encontrar em O capital elementos que ajudam a entender melhor a situação. Mas infelizmente as universidades ainda não se deram conta disso.
E a direita? Está estudando mais Marx?
Eu diria que não. Só posso imaginar que talvez altos gerentes ou diretores de grandes instituições financeiras estariam lendo Marx…
Em algumas semanas*, a Fundação Rosa Luxemburgo promoverá um debate com base no texto sobre a Lei do Furto da Madeira. Na sua opinião, era Marx ecologista?
O tema naquela época não era tão presente como agora, obviamente. Mas o que Marx sabia, e tratou em O capital, é que o sistema capitalista vai destruir a Terra. Através do fato de que o objetivo absoluto é a maximização do lucro, a ser conquistada a todo custo. Isso Marx sabia, e n´O capital prevê que o sistema poderá aniquilar, de um lado, a classe trabalhadora, e de outro, o planeta. Novamente, na sua época a questão ambiental não tinha tanto peso como agora, mas hoje já temos muitos eco-marxistas que trabalham a temática. Como eu vejo, há um esforço crescente de ligar as duas linhas [ecologia e marxismo]. Uma reestruturação socioecológica dos movimentos políticos, no interior de vários partidos de esquerda.
*Em 23 de maio, será lançado na o livro Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira, obra que conta com prefácio de Daniel Bensaid, que contextualiza o texto historicamente 

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