Acordo na surdina pode pôr em risco a soberania sul-americana

Negociações de acordo entre o Mercosul e a União Europeia estão prestes a ser concluídas apesar de graves ameaças aos mercados e à independência dos países do bloco americano

Por Adhemar S. Mineiro*
As grandes negociações multilaterais de comércio que estavam em curso empacaram por diversos motivos. É o caso de acordos como o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership, a Parceria Transatlântica em Comércio e Investimento entre a União Europeia e os EUA), o TPP (Trans-Pacific Partnership, Parceria Trans-Pacífico, entre vários países da orla do Oceano Pacífico, capitaneada pelos EUA) e o TiSA (Trade in Service Agreement, Acordo de Comércio em Serviços, entre vários parceiros, como EUA, União Europeia e outros) visando a abertura ampla do mercado de serviços entre os países membros do acordo.

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XXIX Reunião do Comitê de Negociações Birregionais Mercosul-União Europeia

A principal causa do bloqueio dessas negociações talvez seja a má vontade do novo governo estadunidense em seguir com acertos plurilaterais ou mesmo multilaterais, como a própria Organização Mundial do Comércio (OMC); mas também não se pode desprezar a resistência das populações à velha cantilena do «livre comércio» que só serve às corporações transnacionais financeirizadas.
A despeito deste quadro, porém, as negociações entre o Mercosul e a União Europeia seguem se movendo, mesmo que com dificuldades. Para começar, o Acordo de Associação Bi-regional Mercosul-União Europeia tem três capítulos básicos: diálogo político, livre comércio e cooperação. Mas como a União Europeia pensa em seguir a sério com uma negociação em que o capítulo de diálogo político tem como base a defesa da democracia e da institucionalidade democrática, quando o principal país do Mercosul, o Brasil, se encontra sob um governo que tem sua origem e sua legitimidade questionadas pela violação de princípios básicos da institucionalidade democrática? E quando o próprio Mercosul não sabe em que institucionalidade de fato opera, em função das dúvidas sobre a participação plena ou não da Venezuela como parte do bloco?
E, do outro lado, como o Mercosul segue negociando quando não sabe exatamente com quem está negociando, dada a opção do plebiscito ocorrido no Reino Unido pela saída daquele país da União Europeia?  E quando se fala em liberalização comercial e cooperação, sobre que base de números de fato se está falando? Afinal a UE é uma com o Reino Unido, e outra sem ele.
Uma barganha neocolonial
Em seguida, é preciso dar uma olhada nos conteúdos da tal liberalização comercial, que parece ser o núcleo do acordo, segundo os próprios negociadores. Aqui, em primeiro lugar, a barganha fundamental é quase colonial: um pouco de abertura de mercados da UE para produtos agrícolas do Mercosul, em troca de amplas concessões em nossos mercados de produtos industriais, nas áreas de serviços e em propriedade intelectual (e, de quebra, nas compras públicas) .
Na área de agricultura, a principal demanda do agronegócio da região do Mercosul é a ampliação da cota de carnes na Europa. A essa demanda, o agronegócio brasileiro agrega a ampliação da venda de etanol. O problema não é pequeno, dado o peso político do setor nos países do Mercosul, Brasil em particular.
Do lado europeu, o momento de crise que atinge vários países do bloco impõe perdas que tampouco são politicamente propícias à importação de carnes (e, por tabela, todo o complexo que esta produção articula). Liderados pela França, setores ligados à agricultura de países como Espanha, Itália, Grécia, Irlanda e os países do Leste Europeu – liderados pela Polônia – resistem. Já quanto ao etanol, a entrada do produto a preços mais baixos pode interferir em uma política geral de eletrificação das frotas automotivas, comprando não apenas uma briga com vários países que estão à frente deste projeto, como também com as grandes empresas automobilísticas europeias que fizeram mais apostas neste sentido. Uma briga boa, politicamente, dos dois lados.
Já no Mercosul, a abertura da áreas de serviços aos europeus pode causar estragos ainda maiores em setores como o financeiro, de educação, saúde, água e saneamento, energia, construção e outros, comprometendo direitos ainda presentes na Constituição brasileira e dos demais países do bloco. Também ficam prejudicadas as perspectivas de desenvolvimento futuro, uma vez que, cristalizados em acordos como o que vem se negociando entre o Mercosul e a UE, os custos de mudanças, caso algum governo resolva alterar os rumos, serão enormes.
Nesse sentido, é importante destacar que vários aspectos do acordo em negociação podem limitar ou negar tanto aos parlamentos dos países do Mercosul quanto aos Executivos e Judiciários subnacionais o poder de legislar sobre vários temas e setores incluídos nas tratativas, setores estes que estariam desta forma amarrados por tratados internacionais – uma clara violação da capacidade soberana dos poderes constituídos no Mercosul de decidir sobre o seu futuro.
Para os países do Mercosul, outra área sensível é a de compras públicas. Na primeira década deste novo século, países do bloco com grandes orçamentos, como Brasil e Argentina, tentaram reimpulsionar os processos de industrialização nacional e regional, a partir das políticas nacionais de compras públicas. O setor de petróleo, hegemonizado pela estatal brasileira Petrobras, foi claramente um exemplo disso, expandindo sua política de compras no sentido de dinamizar a indústria metal-mecânica regional (fornecedores de peças, máquinas, navios e plataformas etc.).
De olho nessas possibilidades, quase ao final das negociações travadas a partir de 2004, a União Europeia começou a apresentar demandas de preferências nas disputas por compras públicas nos países do Mercosul, em especial Brasil. E naquela altura os negociadores brasileiros sinalizaram com alguma oferta nessa área, desde que a UE ampliasse sua flexibilidade nas negociações sobre agricultura.
Esse debate volta agora, na nova tentativa de fechar as negociações, em um quadro em que as compras públicas estão fragilizadas na região pelas políticas de ajuste fiscal. Por outro lado, nesse item normalmente não há contrapartida da UE, uma vez que existe uma complicada situação de autonomia dos níveis nacionais e subnacionais, bem como regionais e locais, na UE. Além disso, mesmo no caso do Mercosul, as legislações nacionais também preveem autonomias para os níveis sub-regionais, e qualquer interferência neste sentido seria uma violação dessas autonomias.
Finalmente, na área de propriedade intelectual a visão dos dois lados é bastante diferente. No que se refere às chamadas “regras de origem”, a visão europeia é bem estrita ao caracterizar suas produções regionais. Por outro lado, levadas essas regras às últimas consequências, os países do Mercosul seriam penalizados com processos de aceitação de regras de origem que não reconheceriam o fato de que esses países receberam emigrantes da Europa nos séculos anteriores (em especial espanhóis, portugueses, italianos e alemães), que trouxeram não só a si, como também técnicas de produção que utilizavam nos seus locais de origem, em especial para alimentos (vinhos, queijos, embutidos etc.).
Saúde pública em perigo
Ainda quanto à de propriedade intelectual, a visão expressa pela UE é de tentar garantir ao máximo as patentes de suas empresas farmacêuticas (esse é o maior exemplo), em relação a uma visão do Mercosul, e particularmente do Brasil, que colocou o foco em políticas públicas relacionadas a questões de saúde e na possibilidade de garantir seus programas de distribuição de medicamentos de uso continuado (como em casos de hipertensão, diabetes, e AIDS, entre outros), através da distribuição de genéricos como forma de baratear custos.
Por exemplo, uma estimativa do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE-Fiocruz) aponta que, apenas no caso de uma doença (hepatite C), o pagamento de royalties por patente  representaria um custo adicional anual de R$ 1,8 bilhão (cerca de US$ 600 milhões). Em um quadro de ajuste fiscal nos países, isso representa quase  uma condenação direta dos pacientes que dependem dessas medicações de uso continuado, apenas para garantir grandes lucros das transnacionais farmacêuticas da UE.
Portanto, possivelmente a falta de transparência dos dois lados do Atlântico e os grandes interesses de um grupo pequeno de poderosas corporações, presentes em setores industriais e de serviços na Europa, ou no agronegócio do Mercosul, expliquem por que o  Acordo de Associação Bi-regional Mercosul-União Europeia segue sendo negociado, estando próximo a um consenso de cúpula com complicadas consequências para as populações dos dois lados.
*Economista, técnico do DIEESE, assessor da REBRIP (Rede Brasileira pela Integração dos Povos) e da Secretaria de Relações Internacionais da CUT
Foto: Arthur Max/AIG-MRE

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