Neodesenvolvimentismo extrativista

 Garimpo Oldair Lamarque - Agência Publica
Verena Glass*
“Com tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste” – assim os conquistadores espanhóis avançaram sobre o território asteca no início do século XVI. “Como porcos famintos que anseiam pelo ouro”, foi como descreveu, em 1971, o escritor uruguaio Eduardo Galeano o processo que poderia ser considerado, com a devida relativização, o primórdio da sanha megaextrativista na América Latina.
‘As veias abertas da América Latina, obra que fez de Galeano um dos mais admirados autores de esquerda do nosso tempo, buscou retratar, de maneira contundente, os processos de “cinco séculos de pilhagem” do continente americano. Escrito em um período no qual boa parte dos Estados sul-americanos se encontrava sob regimes militares – que, novamente com a devida relativização, guardavam semelhanças com o conquistador Hernán Cortez no que tange metas e métodos na exploração e dominação das populações, dos territórios e seus bens naturais –, o livro foi proscrito em países como Brasil, Chile, Argentina e Uruguai nos anos seguintes à sua publicação; o que, obviamente, só fez crescer a sua influência no arcabouço analítico das esquerdas sobre a região, “especializada em perder”, como a definiu o escritor uruguaio.
Passados mais de 40 anos do lançamento de As veias abertas, é preciso reconhecer que o mundo mudou. Caíram os regimes totalitários, Estados Unidos e Europa passaram por reconfigurações no tocante a métodos e capacidades de mobilidade no tabuleiro geopolítico da região, a América do Sul se reinventou em processos sociopolíticos progressistas que impactaram o mundo e o Sul global deixou de esquentar o banco dos reservas, abandonou o posto de gandula e passou a jogar e apitar seu próprio jogo em seus próprios campos.
É neste contexto que surge o presente livro. Quando, na virada deste século, as forças progressistas foram paulatinamente ganhando espaço na América do Sul – processo acompanhado pela inclusão, no reordenamento das relações multilaterais, de uma nova estratégia de aprofundamento de relações Sul-Sul –, foi se materializando enquanto realidade cada vez mais presente um novo player do capitalismo do século XXI em nossa região: uma potência chamada China, que vende quase tudo que você usa e compra uma boa parte do que é produzido nos monocultivos, nas minas e nos poços de petróleo do país.
A bem da verdade, como se verificará na leitura deste livro, as relações dos países latino-americanos – e, em especial, o Brasil – com a China não são tão recentes. Mas, como é pontuado aqui, a percepção de que “o mundo é made in China” tem se imiscuído no cotidiano de um espectro cada vez mais amplo de pessoas, e de forma cada vez mais aguda. Do sojicultor à vendedora de batom, do camelô aos presidentes de grandes empreiteiras, da garotada ávida por tecnologia ao indígena espoliado por projeto barrageiro na Amazônia, todos comungam da presença chinesa em suas vidas, para o bem ou para o mal.
Para o leitor que baliza sua medida de aprovação das políticas de desenvolvimento nos preceitos da economia, a atuação da China na América Latina e no Brasil, detalhada neste livro, certamente merecerá calorosos aplausos. Como principais compradores de commodities e bens naturais da região, os chineses têm adotado, em troca, um crescente protagonismo nos investimentos em infraestrutura e demais facilitadores do processo produtivo (numa relação win-win bastante bem-vista pelo mercado). Com a vantagem adicional de que, diferentemente de Cortez e seus “tiros de arcabuz” (ou dos EUA e seus marines), a China é (por enquanto) declaradamente pacifista e se ocupa dos territórios exclusivamente através de acordos comerciais, mercados ávidos e investimentos vultosos.
Esta mesma sanha consumista de mercadorias primárias da nossa região e o concomitante empenho em fomentar nos territórios latino-americano e brasileiro mecanismos de barateamento dos custos das respectivas cadeias produtivas, porém, assumem contornos bem menos atraentes se vistos pelo prisma dos direitos humanos e da natureza, das populações tradicionais e dos indígenas, das soberanias alimentar e energética, da preservação ambiental e da biodiversidade e, principalmente, das resistências ao aniquilamento das diversidades em nome do que se achou por bem chamar de progresso e crescimento.
O neodesenvolvimentismo, adotado em larga medida pelos governos sul-americanos (dos mais aos menos progressistas), tem embasado, nas últimas décadas, os discursos e as políticas que transitam da singular “aceleração do crescimento” à promoção e sustentação de programas sociais e de combate à pobreza (em boa medida via rentismos). Marcadamente neoextrativo, teve o mérito de, paulatinamente, suprimir do consciente coletivo progressista o paradoxo que é a promoção de “bem-estar” via exploração predatória bens naturais.
Mas o que realmente promete este “progressismo de resultados”? O ideário progressista-desenvolvimentista – que em grande medida logrou a diminuição de desigualdades e da pobreza, mas não foi capaz de operar as transformações estruturais no cerne político, social e econômico do poder – vem abandonando os “envoltórios sociais” de seus projetos de crescimento econômico, e o que tem emergido de forma nua e crua são as estruturas das cadeias produtivas da extração de bens primários (incluindo aí a terra e a água usadas na produção agropecuária extensiva), numa lógica made in China de busca por eficiência.
É o que evidencia o debate a partir do capítulo “China na Amazônia” desta publicação. Descrito em minúcias, o projeto de intervenção produtiva do governo brasileiro na Amazônia, em boa parte impulsionado pelas demandas chinesas por maior eficácia nos processos produtivos e de escoamento de grãos, minérios, madeira e petróleo, inclui estradas, hidrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão que rasgam e violam sem pruridos alguns dos territórios mais ricos do país em biodiversidade e mais frágeis em proteção às suas populações nativas.
O estilo veni, vidi, vici adotado pelo governo na implantação de projetos como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira (RO), Belo Monte, no rio Xingu (PA), São Manuel, no rio Teles Pires (MT) e agora São Luiz do Tapajós, em gestação no rio Tapajós (PA), evidenciam um fator preocupante: estes, como todos os demais projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) em andamento na região, já foram alvo de protestos, revoltas ou ocupações. Todos acumulam um sem número de ações judiciais, todos se transformaram em vetores de conflito, e nenhum cumpriu as condicionantes sociais e ambientais obrigatórias dos processos de licenciamento.
Esse desenvolvimentismo “conquistador” vem impregnado de uma ameaça grave ao Estado de Direito, à medida que sua capacidade de avanço depende, cada vez mais, do atropelo das legislações sociais, ambientais e (inclusive) econômicas – ou, mais além, da inobservância intencional de preceitos constitucionais. Cada vez mais autorreferendados, os representantes dos chamados setores produtivos em todas as esferas de poder (inclusive no Judiciário) têm adotado uma ousadia crescente nos ataques ao que consideram entraves e obstáculos à expansão e segurança de seus investimentos, fazendo com que cada vez mais a Constituição seja incapaz de garantir proteção às vítimas desse processo.
O retrocesso ético que tem marcado as políticas desenvolvimentistas de vários governos progressistas vem acompanhado de outro elemento que remete aos tempos – os históricos da narrativa e o cronológico da publicação – de As veias abertas: a violência do Estado contra os “retardatários do progresso”, numa reprodução profundamente colonial da supremacia da “urbanidade moderna” sobre os “territórios serviçais”. Ou seja, a priorização absoluta das necessidades intrínsecas ao urbano – energia, matérias primas, proteína, etc. -, que é também a força motriz e o horizonte do desenvolvimento chinês, que se dá com o sacrifício daqueles que “não cabem mais neste tempo”; porque não se inserem nas cadeias de consumo, não se inserem na matriz produtiva, não servem ao capital e insistem em ocupar territórios riquíssimos com o singular propósito de neles viver.
É importante salientar que, quando se fala em violência de Estado, não é apenas a psicológica, política e jurídica que está sobre a mesa, mas a física, com uso de armas e incursão de forças policiais e militares contra as insurgências sociais. Não à toa, o governo brasileiro criou sua própria força militar – a Força Nacional de Segurança –, que, com a Polícia Federal, tem assumido os processos repressivos contra indígenas, camponeses e trabalhadores descontentes para garantir os interesses público-privados do capital público-privado, sob um discurso não de repressão, mas de proteção e segurança. Mais além, esse mesmo discurso transforma em interesse nacional os investimentos do capital privado, e em ameaças à soberania e à segurança do país quaisquer movimentos de resistência (inclusive os advindos do Ministério Público em forma de ações judiciais que questionam violações legais e/ou constitucionais).
Ora, se é esse o pacote que acompanha a “dimensão incontornável nas reconfigurações civilizatórias em curso, que estão redefinindo em grandes linhas os fluxos de matéria e energia no planeta e o metabolismo do capitalismo no século XXI”, como é descrito neste livro o advento da nova era made in China, não é abusivo questionar até que ponto o jogo no campo Sul-Sul não segue as mesmas regras do modelo hegemônico do Norte. Até que ponto a aposta em uma força contra-hegemônica como os BRICS, por exemplo, não reproduz a mesma relação de subordinação colonizada das populações que historicamente foram vitimadas sob a dominação do capitalismo euro-americano? Para o camponês ou a comunidade indígena, faz alguma diferença se o agrotóxico que os contamina é americano ou chinês? Se a mineradora é canadense ou chinesa? Se a soja que ocupa seus territórios alimentará suínos na Espanha ou chineses na China? Como justificar que “o ‘sonho chinês’ materializa pesadelos desenvolvimentistas em escalas inéditas”, como aponta esta publicação?
Essas são algumas das reflexões que o livro apresenta a seus leitores, a partir da dissecação do papel da China em nosso país e em nossas vidas. Provavelmente haverá momentos em que o leitor pensará consigo mesmo que, dada a voracidade dos mercados internacionais e o mata-mata no ringue global do capitalismo, na falta de para onde correr até que o emaranhamento inexorável de Brasil e China não é assim tão mal. Afinal, trata-se de uma relação de mútuo benefício.
Será mesmo? De fato, o olhar atento captará, inclusive nas linhas que relatam as vantagens econômicas de uma determinada fatia da sociedade brasileira nas relações com a China, que este livro é uma convocação urgente para o questionamento dos rumos que o Brasil vem trilhando. Apenas garantir o ter (como tem buscado o governo com suas políticas de facilitação de acesso ao consumo), sem garantir a liberdade plena de ser, não é o bastante.
Muito já se falou em estabelecer limites ao desenvolvimento. Muito já se lutou pela garantia dos direitos da parcela da população mais frágil de nosso país. Muito já se criou, em termos de alternativas, para provar que a premissa de que “não há outro jeito” é falaciosa. Então como é possível que as lutas por avanços das conquistas sociais e que as bandeiras reivindicatórias pela multiplicação de diversidades venham sendo suplantadas e substituídas pela urgência agônica das resistências contra os retrocessos que ameaçam o que já havia sido garantido? Quanto do esbulho da América Latina relatado em As veias abertas não tem sido reproduzido (de forma repaginada ou ipsis litteris) sob olhares condescendentes e/ou coniventes dos discípulos do neodesenvolvimentismo?
Em sua trajetória no Brasil, no Cone Sul, na América Andina e na América Central, a Fundação Rosa Luxemburgo tem buscado entender, introjetar, apoiar, instrumentalizar e difundir processos emancipatórios que rompam com o modorrento pensamento único imposto por um tradicionalismo colonialista transvestido de urgência da modernidade. Este livro é, assim, mais uma pequena contribuição para o debate sobre o que fomos, o que estamos e o que seremos – ou podemos ser.
* Verena Glass é coordenadora de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo. Este texto é o prefácio do livro O Brasil made in China
Foto: Oldair Lamarque, Agência Pública
 
 
 
 
 

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