Evento de apresentação do livro «Cooperativismo de plataforma – Contestando a economia do compartilhamento corporativa» reúne sindicalistas, desenvolvedores e pesquisadores em SP. Adoção de tecnologias livres pode ser o caminho contra a uberização do trabalho? Por Daniel Santini
No dia da aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei 5587/2016, que determina a base para a regulamentação dos serviços de transporte individual de passageiros por meio de aplicativos digitais no Brasil, a empresa Uber investiu consideravelmente em uma campanha para influenciar a opinião pública e deputados federais. A multinacional é contra qualquer restrição ao lucrativo modelo pelo qual gerencia motoristas para o atendimento das solicitações que recebe de celulares conectados à internet. Nesta quarta-feira, dia 4, a empresa comprou páginas duplas nos principais jornais do país para cobrar dos parlamentares respeito ao que classifica como «direito de escolha».
Apesar de apresentada como uma mera questão de respeito à opção dos consumidores, a decisão do parlamentares de estabelecer regras mínimas sobre a intermediação de serviços por meio de aplicativos envolve muitos outros aspectos, incluindo o risco de precarização das condições de trabalho dos profissionais do setor e a consolidação de um modelo econômico marcado pela concentração de dinheiro e poder nas mãos de poucas empresas estrangeiras. Trata-se de uma discussão difícil e que não se limita ao transporte. Pelo contrário, a assim chamada «economia do compartilhamento» avança com velocidade em diferentes áreas, beneficiada pela falta de regras e pela dificuldade do poder público de acompanhar e legislar sobre novos formatos de negócio.
É justamente na crítica à rápida disseminação de aplicativos de empresas multinacionais e seus impactos que se baseia o livroCooperativismo de plataforma – Contestando a economia do compartilhamento corporativa, apresentado na noite do 3 de abril, em um debate realizado no Ateliê do Gervásio, em São Paulo. O livro, publicado no Brasil pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com as editoras Autonomía Literária e Elefante, não se limita a fazer um alerta contra as mudanças em curso. O autor Trebor Scholz fala com entusiasmo das novas ferramentas digitais e suas possibilidades, defendendo que a internet pode ser o lugar para uma nova fase do cooperativismo, agora beneficiado por plataformas de solidariedade baseadas em software livre. Conectado de Nova Iorque, onde dá aula de cultura e mídia digital na The New School, ele conversou com uma plateia de cerca formada por sindicalistas, desenvolvedores, pesquisadores e curiosos.
A conversa, que durou quase duas horas, foi transmitida pela TV Drone e está disponível na íntegra:
Citando exemplos de sucesso que vão de cooperativas de trabalhadores imigrantes latinos nos Estados Unidos à redes de transporte individual organizadas a partir da articulação de redes de motoristas particulares, Trebor Scholz falou sobre como novas formas de organização podem surgir em contraposição ao modelo empresarial, defendeu sistemas baseados em ferramentas e licenças abertas, e a adoção de tecnologias livres. A apresentação contou com a participação do responsável pela tradução da edição para o português, Rafael Zanatta, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo e em Direito e Economia Política pela Universidade de Turim, na Itália, e pesquisador em direitos digitais e telecomunicações no Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Também participou Rodrigo Souto, Graduado em Ciência da Computação na UFBA, desenvolvedor e integrante da Cooperativa de Trabalho em Tecnologias Livres (Colivre), organização baseada em Salvador, na Bahia. A mediação foi de feita pela escritora Ana Rüsche, que, com Daniel Santini, é autora do prefácio da edição brasileira. Economia de compartilhamento e cooperativismo Ao introduzir a discussão sobre as novas formas de organização econômica baseadas em tecnologia, Rafael Zanatta lembrou que o próprio termo «economia de compartilhamento» surgiu para designar bases públicas abertas coletivas, tais como a Wikileaks, ou ferramentas de software livre. Ele critica a maneira como o modelo de plataformas baseadas em código proprietário e administradas por poucas empresas multinacionais foi e segue sendo implementado. «»Houve uma resignificação por parte de empresas. As coisas aparecem de maneira atropelada, sem o mínimo de discussão». Como alternativa, o advogado defende que é possível pensar em uma nova era de cooperativismo em redes, algo como uma economia solidária digital.
O público participou bastante com questões sobre pontos teóricos, como as posições críticas da própria pensadora Rosa Luxemburgo sobre cooperativismo, incluindo eventuais limitações de alcance político, algo que o autor menciona no livro, até questões bastante práticas, como o desequilíbrio na concorrência entre transnacionais e pequenos grupos de cooperados na prestação de serviços, inclusive com a defesa de que as subcontratações sem direitos praticada pelas empresas poderiam ser entendidas como dumping social. Representantes das Central Única dos Trabalhadores (CUT), presentes no evento, mencionaram que existem demandas de motoristas de Uber por apoio para sindicalização e para garantia de direitos, e manifestaram preocupação em relação ao futuro de diferentes categorias. O aumento da automação e a perspectiva de cada vez mais robôs cumprirem com funções até então realizadas por pessoas também foram temas discutidos.
Como integrante de uma cooperativa de tecnologia baseada em Salvador, Rodrigo Souto defendeu que a própria organização do trabalho neste formato já é uma posição política, assim como a decisão de adotar o software livre, uma premissa fundamental do trabalho do grupo em que está envolvido. Ele entende que, para evitar que as estruturas coletivas já consolidadas acabem cooptadas, é preciso firmar redes de cooperativas, frentes amplas capazes de lutar por mudanças. Citou os desafios e necessidades de atualização da legislação. «Abrir uma cooperativa é mais complicado que abrir uma empresa e, neste formato, há limitações como participar de alguns editais, por exemplo», menciona. Como parte das alterações necessárias, ele defende que é preciso também considerar mecanismos para dificultar o que chama de «coopergatos», cooperativas de fachada que são controladas como empresas e servem apenas para fugir de impostos e obrigações trabalhistas.
O debate foi o primeiro de uma série de discussões relacionadas ao tema previstas para as próximas semanas. Em maio, durante a próxima edição da CryptoRave, evento organizado com base em financiamento coletivo (se puder, por favor, colabore), estão previstas mais atividades, com programação a confirmar.
Cooperativismo de Plataforma. Contestando a economia do compartilhamento corporativa Título original: Plataform Cooperativism: Challenging the Corporate Sharing Economy
Trebor Scholz
Tradução e comentários: Rafael Zanatta
#ROSALUX01
Fundação Rosa Luxemburgo; Editora Elefante; Autonomia Literária
São Paulo 2017, 96 páginas
ISBN 978-85-683-0209-5 Download gratuito