Por Michael Löwy e Olivier Besancenot
Confira trecho sobre Rosa Luxemburgo do novo livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot, «Afinidades revolucionárias, nossas estrelas vermelhas e negras», da Editora Unesp
Rosa Luxemburgo, a grande revolucionária judia polonesa/alemã, assassinada em janeiro de 1919 pelos bandos paramilitares mobilizados pelo governo social-democrata contra os operários de Berlim, nunca foi anarquista. Em seus escritos, encontram-se inúmeras críticas às ideias anarquistas e sempre permaneceu fiel à concepção marxiana do partido como expressão política da classe. Mas, por certos aspectos de seu pensamento e de sua ação revolucionária, ela estava, no entanto, próxima da cultura libertária: sua crítica do autoritarismo burocrático no seio do movimento operário, seu antinacionalismo, sua confiança na espontaneidade das massas, sua insistência na revolução proletária “por baixo”, sua defesa apaixonada das liberdades individuais e coletivas são elementos dessa afinidade latente. Não é por acaso que um dos grandes pensadores do socialismo libertário, Daniel Guérin, consagra-lhe um livro, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária (1971).
Militante polonesa do movimento operário do império tsarista, critica muito cedo as tendências, a seu ver excessivamente autoritárias e centralistas, dos bolcheviques. Refutando, em um artigo de 1904, a ideia – comum a Karl Kautsky e ao primeiro Lenin – de uma consciência socialista introduzida na classe operária “de fora”, propõe uma concepção dialética da relação entre consciência e luta:
Só na própria luta é recrutado o exército do proletariado e também, só na luta, as tarefas da luta se tornam claras. Organização, esclarecimento e luta não são aqui momentos separados, mecânica e temporalmente distintos, […] mas são apenas diferentes aspectos mesmo processo.[1]
É óbvio, reconhece Rosa Luxemburgo, a classe pode se enganar ao longo desse combate, mas, em última análise, “os erros cometidos por um movimento operário verdadeiramente revolucionário são, do ponto de vista histórico, infinitamente mais fecundos e valiosos do que a infalibilidade do melhor ‘Comitê Central’”. A autoemancipação dos oprimidos implica a autotransformação da classe revolucionária por sua experiência prática. Demonstra-se a divergência de opinião entre Rosa Luxemburgo e o Lenin de 1903 pela seguinte imagem: para Vladimir Ilitch, redator do jornal Iskra, a “centelha” revolucionária é trazida pela vanguarda política organizada, de fora para o interior das lutas espontâneas do proletariado; para a revolucionária judia polonesa, a centelha da consciência e da vontade revolucionária acende-se no combate, na ação de massas.
Os acontecimentos revolucionários de 1905 no Império Russo tsarista confirmam amplamente Rosa Luxemburgo em sua convicção de que o processo de tomada de consciência das massas operárias resulta da ação direta e autônoma dos trabalhadores:
É pelo proletariado que o absolutismo na Rússia tem de ser derrubado. Mas, para tanto, o proletariado tem necessidade de um alto grau de educação política, de consciência de classe e organização. Não se pode aprender todas essas coisas em brochuras ou em panfletos; tal educação ele a adquirirá na escola política viva, na luta e pela luta, no decorrer da revolução em marcha.[2]
Sua concepção da greve de massa difere da dos anarquistas, entretanto há semelhanças evidentes, como denuncia rapidamente Karl Kautsky (1854-1938), o antigo secretário de Engels, que se tornou um dirigente importante da social-democracia alemã (SPD). Em uma polêmica, em 1913, Kautsky, editor da mais importante revista alemã socialista Die Neue Zeit (fundada por ele em 1883), acusa Rosa Luxemburgo de avançar, na brochura de 1906, em teses “anarcossindicalistas” e fazer uma “síntese das concepções social-democratas e anarquistas”.[3]
Como dirigente da ala esquerda da social-democracia alemã, Rosa Luxemburgo bate-se contra a tendência da burocracia sindical e política, e da representação parlamentar, de monopolizar as decisões políticas. A greve geral russa de 1905 parece-lhe um exemplo a seguir também na Alemanha: ela tem mais confiança na iniciativa da base operária do que nas “sábias” decisões dos órgãos dirigentes do movimento operário alemão.
Ao saber, na prisão, dos acontecimentos de outubro de 1917, solidariza-se imediatamente com os revolucionários vermelhos. Em um texto intitulado A Revolução Russa, que redige em 1918, na prisão, e é publicado em 1921, dois anos após sua morte, presta homenagem calorosa aos dirigentes revolucionários de outubro. Mas seu testemunho não a impede de criticar o que lhe pareça errado ou perigoso na política deles. Levando em conta a impossibilidade para os bolcheviques, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criarem “como por magia, a mais bela das democracias”, ela chama a atenção, no entanto, para o perigo de um resvalamento autoritário e insiste na importância decisiva das liberdades individuais e coletivas em todo o processo revolucionário:
Liberdade somente para os participantes do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. […] Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem livre debate de opiniões, a vida se despedaça em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente em que só a burocracia subsiste como único elemento ativo.
O socialismo é um produto histórico “nascido da própria escola da experiência”, o conjunto das massas populares deve participar dessa experiência, senão “o socialismo é decretado, outorgado por uma dúzia de intelectuais em torno de um tapete verde”.
Aos inevitáveis erros do processo de transição, o único remédio é a própria prática revolucionária: “A própria revolução e seu princípio renovador – a vida intelectual, a atividade e a autorresponsabilidade das massas que ela suscita, portanto a mais ampla liberdade política como forma – são o único sol que cura e purifica”.[4] Esse argumento é muito mais importante do que a controvérsia que nasce do capítulo que consagra em A Revolução Russa à “Dissolução da assembleia constituinte”, sobre o qual concentraram-se as objeções “leninistas”.
Sem liberdades democráticas, a práxis revolucionária das massas, a autoeducação popular pela experiência, a autoemancipação dos oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe dos trabalhadores são impossíveis.
Seria difícil não reconhecer o alcance profético da advertência de Rosa Luxemburgo. Alguns anos mais tarde, a burocracia se apossaria na União Soviética da totalidade do poder, eliminando progressivamente os revolucionários de outubro. Ao longo dos anos 1930, a exterminação de qualquer suposto opositor seria implacável.
Em um de seus últimos discursos, pronunciado no momento da fundação do Partido Comunista Alemão, Rosa Luxemburgo explicava sua concepção da tomada de poder: contrariamente às revoluções burguesas que se limitam a destituir o poder oficial e a substituí-lo por alguns homens novos, a revolução proletária deve “agir na base”: “Devemos conquistar o poder político não por cima, mas por baixo”.[5] Sua crítica dessa vez é dirigida à social-democracia alemã que então se limitava a instalar seus homens à frente do Estado burguês…
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[1] Luxemburgo, Questions d’organisation de la social-démocratie russe (1904), p.21.
[2] Id., Grève de masse, parti et syndicats (1906), p.113-4.
[3] Kautsky, Der politische Massenstreik, p.202-203. Para uma análise das convergências e discordâncias entre a “greve de massa” de Rosa Luxemburgo e a “greve geral” anarcossindicalista, ver Guérin, Rosa Luxemburg et la spontaneité révolutionnaire, p.49-63 e 69-83.
[4] Luxemburgo, La Révolution russe (1918), p.82-86.
[5] Id., Notre programme et la situation politique (1918-9), p.128.