Em conferência, professor Carlos Vainer aponta as conexões entre o modelo empresarial de cidade e os megaeventos.
Por Júlio Delmanto, Fundação Rosa Luxemburgo
A convite do Grupo Cidade e Trabalho, coordenado pela socióloga Vera da Silva Telles, o professor carioca Carlos Vainer, da UFRJ, visitou a Universidade de São Paulo na última quarta-feira, 16 de outubro, onde apresentou conferência sobre cidades de exceção e megaeventos no Brasil. Realizado durante um momento de efervescência política no interior da universidade, o evento foi divulgado e organizado como parte do calendário de greve dos estudantes, que ocupam a reitoria em defesa de democracia na instituição.
Antes da exposição de Vainer, que é integrante do IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional), Vera Telles fez questão de manifestar orgulho pela atividade integrar o calendário de greve e também ressaltou a importância do trabalho do pesquisador no debate público sobre os impactos urbanos das obras ligadas à Copa do Mundo de 2014. “Essa discussão está bem avançada no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo ainda estamos começando, sobretudo na USP”, avaliou.
Despotismo do capital
Formado em Economia e Sociologia e doutorado em Desenvolvimento Econômico e Social, Vainer iniciou sua fala lembrando que o que ele classifica como cidades de exceção não é algo que seja sinônimo de megaeventos, sendo que na verdade estes grandes projetos são posteriores a seu advento, servindo como forma de agravar o modelo de cidades que já estava colocado, no mínimo, desde a consolidação do neoliberalismo em âmbito global. “Na verdade, os megaeventos só são possíveis por conta dos processos que as cidades têm passado desde os anos 1970, com a crise do taylorismo-fordismo e do chamado Estado de bem-estar social”, apontou, vendo neste período o início de uma reconfiguração na relação entre capital, Estado, sociedade e cidade.
“Essa reconfiguração redefiniu o lugar e o papel da cidade, modificou-se a maneira de pensa-la e concebê-la”, prosseguiu, explicando que, a partir dos anos 1980, as cidades passam a ser vistas pelo poder sobretudo como unidades econômicas, como empresas individuais que concorrem num mercado global. Deriva deste entendimento a conclusão de que, sendo assim, os municípios precisam ser geridos como corporações, com seus métodos de planejamento estratégico, cortes de gastos e concorrência.
Para Vainer, a palavra chave neste discurso empresarial é “flexibilidade”: “é preciso ser flexível para aproveitar as ‘janelas de oportunidades’, senão a cidade perde a concorrência para outras, suas rivais”. Essa maleabilidade é operada no que diz respeito às leis e regulamentações urbanas, que devem ser torcidas o quanto for preciso para satisfazerem os capitais em busca de locais para investir, num processo que François Archer chamou de “urbanismo ad hoc”. “O urbanismo moderno apresentava restrições ao capital, já o neo-urbanismo privilegia as negociações e os compromissos em detrimento da norma geral”, explicou o professor.
Se a cidade é uma empresa, deve ser gerida por quem “entende de negócios”, defende o Banco Mundial, para quem o setor privado deve assumir o comando total da política urbana. Para esta concepção, a cidade é lugar de negócios tanto quanto a escola de ensino ou o legislativo de política. “Marx chama isso de despotismo do capital”, destaca Vainer.
Leis que autorizam o descumprimento da lei
O conferencista seguiu sua exposição explicando como o filósofo Giorgio Agamben trabalha com o conceito de Estado de exceção, ponto chave nas formulações do debate em questão. “Agamben explica que o Estado contemporâneo é de exceção. A exceção opera sob a forma da lei, mas na verdade contrariando a lei”, indistinguindo o que é direito e o que é fato político e qual deles irá prevalecer.
Exemplo maior disso é a cidade de São Paulo, onde praticamente metade de sua área está sob regime das “Operações urbanas”, nas quais as regras urbanas não precisam seguir as leis e o Plano Diretor, sendo negociadas caso a caso. “Em São Paulo a regra está em constante negociação, e nas outras cidades de exceção não é diferente”, descreve Vainer, que também citou o Estatuto da Cidade como exemplo, já que este estabelece, em seu artigo 32, que no caso de operações urbanas é possível “a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente”. “Ou seja, é uma lei que autoriza o descumprimento da lei”, resume.
A realização dos megaeventos é uma ótima oportunidade para se amplificarem ações e legislações como essas, de exceção. É o caso por exemplo do Ato olímpico federal, que, entre outras questões, dá ao Comitê Olímpico Internacional (COI) o direito de indicar pessoas para entrarem no Brasil sem a emissão de vistos. Além disso, eu seu quinto artigo esta lei cria a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, órgão subordinado ao Ministério da Justiça e que desde seu nome já indica que serão tomadas ações extraordinárias, e prevê diversas outras formas de exceção, como regimes de contratação sem licitação, exceções na Lei de Responsabilidade Fiscal, isenções tributárias, etc.
“A cidade exceção é a nova forma de regime urbano”, resume Vainer. “A exceção surge como norma e as leis estão completamente livres de controle político, é o que chamo de democracia direta do capital”, complementou, antes de questionar: “E para aquelas para quem a exceção sempre foi a regra?”. A resposta passa por termos que, de tão denunciados, já se tornaram clichês, mas nem por isso menos atuais: militarização, criminalização dos pobres, remoções forçadas, violência institucional, falta de acesso à justiça e à informação, etc.
Só em relação às remoções forçadas, Vainer calcula que o número de atingidos pode ser de até 200 mil pessoas. “Estão aproveitando os megaeventos para aprofundar a desigualdade de maneira intensa”, avalia, antes de salientar: “mas há resistência, isso indica que podemos fazer uma cidade diferente”.
*crédito das imagens: NefFlu e Agência Pública