Julgamento simbólico condena extensão da Lei de Anistia

Comissão da Verdade da PUC retoma Tribunal Tiradentes a fim de pedir punição a torturadores e seus mandantes e colaboradores, às vésperas do 50º aniversário do golpe de 1964.
 
Por Júlio Delmanto, Fundação Rosa Luxemburgo
Organizado inicialmente em 1983 pela Comissão de Justiça e Paz, a fim de julgar a Lei de Segurança Nacional, e reeditado no ano seguinte versando sobre o Colégio Eleitoral que elegeria o primeiro presidente após o término do regime militar, o Tribunal Tiradentes voltou na noite desta terça feira, 18 de março, a analisar simbolicamente um tema relativo ao período de autoritarismo entre 1964 e 1985. Desta vez a cargo da Comissão da Verdade da Pontifícia Universidade Católica (PUC), o Tribunal Tiradentes III condenou a Lei de Anistia, aprovada em 1979, e pediu sua revisão, às vésperas do quinquagésimo aniversário do golpe de 64.
Composto por um público predominantemente jovem e universitário, mas contando também com diversas figuras emblemáticas da esquerda brasileira, o evento foi realizado no teatro Tuca, que fica ao lado da PUC, e estava tão lotado que não só todas suas cadeiras foram ocupadas como também os corredores e praticamente qualquer lugar onde se pudesse sentar com um grau mínimo de conforto. Do lado de fora havia ainda um telão e caixas de som para mais pelo menos uma centena de pessoas que acompanhavam sem entrar no teatro.
Presidida pelo jornalista Juca Kfouri, sobrinho da ex-reitora que nomeia a Comissão da Verdade da PUC, Nadir Kfouri, a sessão foi precedida por uma intervenção de ativistas do Levante Popular da Juventude, que descontraidamente ocuparam o palco tocando um funk de protesto contra os torturadores e sua não punição. “Lei da anistia nós precisamos rever, nossa história não é algo pra esquecer”, cantaram os jovens, para quem “se a ditadura já acabou, quero saber que militar que torturou”.
Além de Kfouri, o evento foi composto pelos notórios especialistas em Direito Luiz Eduardo Greenhalgh, que inaugurou os trabalhos, Fábio Konder Comparato, a cargo da acusação, e Antonio Carlos Malheiros, responsável pela ingrata e teatral tarefa de defender a Lei de Anistia. Falaram ainda, como testemunhas de acusação, Amelinha Telles, representando os parentes das vítimas, Marlon Weichert, do Ministério Público, Rogério Sottili, Secretário Municipal de Direitos Humanos, Adriano Diogo, da Comissão da Verdade de São Paulo, e a deputada Luiza Erundina, e o júri era composto por representantes do MST, da UNE, da CUT, da OAB, da Comissão Justiça e Paz e pelo ator Sérgio Mambert simbolizando a classe artística.  
 
“Chega de novos Amarildos!”
Defensor de diversos perseguidos políticos durante o regime militar, Luiz Eduardo Greenhalgh ocupou o púlpito logo após saudações feitas pela professora Rosalina Santa Cruz e por um estudante, e frisou que a “a Anistia não foi uma dádiva do regime, foi uma conquista do povo”. Lembrando das duas primeiras edições do Tribunal Tiradentes, “experiências importantes que mostram que às vezes sentenças de um júri simulado podem ser muito mais verdadeiras e justas do que as dos tribunais oficiais”, ele destacou que a sessão atual buscava analisar e julgar um aspecto específico da Lei de Anistia de 1979: “O artigo 1º, parágrafo 1º, que estendeu a anistia aos agentes do Estado. A questão aqui é: os integrantes da repressão podem continuar a serem beneficiados por essa lei?”.
Mesmo que estivesse bastante claro que para os presentes a resposta é não, foi seguido o protocolo, que dava voz agora para testemunhas de acusação como o Secretário Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili, para quem interpretações equivocadas da Lei de Anistia ainda “dificultam a transição completa” da ditadura à democracia, e a deputada do PSB Luiza Erundina, que é autora de um Projeto de Lei que busca revisar no Congresso a questão que foi discutida nesse evento. Como o Supremo Tribunal Federal julgou em 2010 improcedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questionava a anistia aos agentes do regime militar, Erundina acredita que cabe aos parlamentares modificarem o ordenamento que foi instituído por seus pares, segundo a deputada de forma completamente contrária ao que defendia a sociedade civil e a opinião pública. “A luta continua: não vamos desanimar nem desistir”, clamou, aplaudida.
“A anistia de 1979 foi parcial, os militantes da luta armada não entraram, mas ela não foi para os torturadores!”, criticou Amelinha Telles, figura de destaque no feminismo brasileiro e representante dos familiares de mortos, desaparecidos e torturados durante a ditadura. “O discurso na época era de que os crimes de sangue não são anistiáveis, por isso excluíram a luta armada. As mãos deles estão sujas de sangue e o Brasil tem a obrigação de responsabilizar seus agentes, nem a ditadura teve coragem de anistiar os torturadores”, prosseguiu, antes de defender que a manutenção de tal impunidade seria uma “condenação para vivermos de forma permanente os horrores do obscurantismo e do terror, que são o legado da ditadura. Queremos um basta, chega de novos Amarildos!”, concluiu.
Membro da Comissão da Verdade de São Paulo, o deputado estadual Adriano Diogo, do PT, também fez um testemunho emocionado e bastante aplaudido, buscando conectar os crimes cometidos na ditadura com os ainda atualmente empreendidos pelo Estado brasileiro, agora não apenas contra os dissidentes políticos mas sobretudo contra os pobres. Para ele, “concordar com a Lei de Anistia é concordar com todas as chacinas e os grupos de extermínio das polícias militares do Brasil, é concordar que os assassinatos continuem sendo registrados como resistência seguida de morte, é permitir que a população de rua seja tratada da forma que é, é concordar que os cerca de 500 desaparecidos e 80 mil torturados não têm direito à revisão desse período, é concordar com o genocídio dos indígenas e com essa mídia absurda que dirige esse país”, declarou com indignação.   
 
Responsabilidade coletiva do terrorismo de Estado
A seguir foi a vez da defesa da Lei de Anistia, missão assumida com boa dose de ironia pelo desembargador Antônio Carlos Malheiros, que apontou não serem mais possíveis contestações jurídicas de tal ordenamento após a decisão do STF em 2010. Além disso, a lei representaria um pacto social que teria posto fim à violência política do momento, sendo uma garantia constitucional que, se revista, traria profunda “insegurança jurídica” à nação. “A própria sustentabilidade e legitimidade da Constituição seria posta em questão, esse acordo é o germe da atual Constituição, foi um dos momentos mais importantes da luta pela redemocratização do país. É preciso seguir em frente, vamos deixar esses velhos [torturadores] decrépitos apodrecerem em paz, não há mais nada a fazer além de expor seus nomes na mídia”, conclamou.
Fábio Konder Comparato subiu ao púlpito na sequência, iniciando sua exposição apontando que “essa acusação tem como objetivo defender a dignidade do povo brasileiro, sou defensor daquele que nunca esteve presente nos grandes momentos da nossa história”. Seguindo essa linha, Comparato fez uma profunda e inteligente arguição, lembrando que “o povo é sempre posto de lado na história do Brasil: durante três séculos e meio tivemos o maior crime da história do Ocidente, a escravidão legal, e com isso fica até hoje a ideia de que quem não tem dinheiro, poder ou armas não deve ser respeitado”. Para o advogado, criador da Escola de Governo, a política de “terrorismo de Estado” empreendida durante os anos de chumbo visava aniquilar a oposição e “desde Nuremberg o terrorismo é definido como crime contra a humanidade, o que leva à consequência de que os Estados que o cometeram não tem condições para decretar sua própria anistia”.
Citando casos concretos da prática repressiva, como a Operação Bandeirante (Oban), a Casa da Morte de Petropólis, o combate à guerrilha do Araguaia e a Operação Condor, Comparato apontou que “inúmeras atrocidades foram cometidas e, assim como em relação à escravidão, ninguém mais ousa falar nisso. É indispensável refletir sobre a responsabilidade coletiva do terrorismo de Estado, pois se os primeiros responsáveis foram os militares, também houve colaboradores importantes como o empresariado e os controladores dos meios de comunicação de massa”.
Para o advogado, a Lei de Anistia foi um pacto entre as Forças Armadas, que perdiam apoio crescentemente,  e o empresariado como condição para que o Exército devolvesse o poder aos civis. “Os militares precisavam se proteger, e daí é proposta a Anistia, que foi escrita de um jeito bem brasileiro: dissimulado e falso. O artigo sobre crimes conexos não diz coisa nenhuma, os tipos penais não são denominados, é a velha prática que diferencia o direito oficial do direito efetivo, que se aplica quando os interesses dominantes são ameaçados”, analisou, referindo-se ao artigo que, na atual interpretação jurídica, trata tortura, sequestro, estupro, morte e ocultação de cadáver como “crimes conexos” aos crimes políticos anistiados com essa lei.
 
Veredicto
Por fim, com a sessão já passando de três horas de duração, foram proferidos os veredictos dos seis jurados, que levaram à sentença exposta ao final por Juca Kfouri: “estão excluídos do manto protetor da Lei de Anistia todos os autores de crimes contra a humanidade, tais como homicídio, tortura, estupro, sequestro, desaparecimento forçado, ocultação e destruição de cadáveres de oponentes políticos”. “São também responsáveis todos os agentes públicos que auxiliaram os autores de tais crimes e todos os agentes estatais mandantes de tais crimes”, complementou o presidente, que ao final do evento entregou cópias da decisão para o Padre Júlio Lancelotti, incumbido da missão de faze-la chegar ao Papa Francisco, e para Maria Rita Kehl, da Comissão Nacional da Verdade, que poderá inclui-la no relatório final da entidade que será divulgado no fim do ano.
 
Foto e informações complementares: Rede Brasil Atual

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