Em nome da Rosa

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Por Gerhard Dilger*
 

Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio.

Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa

O capital não conhece outra solução que não a da violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência; a resistência à agressão tem o caráter de uma luta de vida ou morte…

Rosa Luxemburgo, A acumulação do capital

 
Qual o significado de Rosa Luxemburgo (1871-1919) para as lutas sociais no Brasil de hoje? Pode ela ser mais do que um ícone, um símbolo, uma lutadora de quem a maioria só conhece algumas citações cativantes?
Sim – a nova edição de Rosa Luxemburgo ou o preço o da liberdade liga-se a uma longa tradição da recepção brasileira de Luxemburgo, que vai de Mario Pedrosa, Paul Singer e Michael Löwy a Isabel Loureiro. No livro Socialismo ou barbárie – Rosa Luxemburgo no Brasil [1], organizado por ela, militantes e intelectuais falam detalhadamente sobre o significado da socialista polonesa-alemã para a esquerda brasileira.
Paulo Arantes lembra que já no ano altamente político de 1968, na Universidade de São Paulo,  Rosa era sobretudo uma referência anti-stalinista. Pouquíssimos estudantes devem ter lidado intensivamente com sua obra:

Em qualquer canto havia reunião de grupo, você nem sabia quem era, entrava, saía, tinha reunião de departamento, a gente não sabia se era reunião do seu departamento, se era reunião da ala tal, do grupo tal, da dissidência tal; tinha professor e estudante misturado… Havia professores que já estavam militando, e havia discussão teórica, doutrinária para tudo, você não pedia um aparte, não dizia “vou tomar água, vou ao banheiro” sem citar Lênin, Mao Tse-tung…
A Rosa Luxemburgo, quando aparecia no debate, era sempre como critério moral de radicalismo. E também era um teste para saber quem era autoritário e quem era libertário: “eu quero saber quantas obras da Rosa Luxemburgo você encontra em Havana, na biblioteca de Havana? Eu estive lá e não vi nenhuma! É uma infâmia, o camarada está…”– e assim por diante. Não havia discussão – pelo menos nas rodas estudantis – do luxemburguismo; era um critério para você se identificar e era um critério moral para saber se o cara era stalinista ou não. Ou se era a favor da dissolução da assembléia constituinte na Rússia [risos]. Ou se a democracia era para todos ou era pra ninguém. Era só isso.

No século XXI isso não mudou muito. Também agora, para muitos que não conhecem sua obra, Rosa Luxemburgo é um modelo – devido a sua atitude. Sua revolta coerente contra o capitalismo e as guerras e lhe deram muitos anos atrás das grades. Ela queria, com sensibilidade e radicalidade, ir ao fundo das coisas. Nisso pode ser comparada a Ernesto Che Guevara – ademais as circunstâncias igualmente dramáticas dos assassinatos, ela na Berlim de 1919, ele em La Higuera, na Bolívia, em 1967, fizeram praticamente de ambos “mártires da revolução“.
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Mas não estamos aqui interessados no mito Rosa e sim na mulher e sua obra. O erudito texto do historiador alemão e editor Jörn Schütrumpf, que ainda na RDA fez a experiência de como os governantes procuravam instrumentalizar Rosa Luxemburgo a seu favor, dá-nos indicações valiosas quanto a isso.
Rosa Luxemburgo não era em primeiro lugar teórica, mas, antes de mais nada, membro ativo de dois partidos socialistas, jornalista polêmica e oradora de língua afiada, educadora popular, internacionalista convicta – e, naturalmente, uma mulher do seu tempo. O estudo de sua obra “não é exatamente fácil“ se tivermos em vista resultados que possam ser aplicados hoje, escreve a feminista alemã Frigga Haug: “Não iremos particularmente longe se procedermos como de costume e nos dedicarmos apenas à leitura conscienciosa das grandes obras“.[2]
No entanto, o reconhecimento de seus escritos econômicos é frequentemente negligenciado. Por essa razão, acrescentamos à primeira edição de 2006 três artigos focados em A acumulação do capital (1913) – a obra que inspirou David Harvey a atualizar a “acumulação primitiva permanente“ no seu conceito, muito citado, de “acumulação por expropriação”. Que a análise do imperialismo feita por Luxemburgo continue sendo de uma impressionante atualidade, justamente da perspectiva latino-americana, é o que mostram Michael Löwy e Isabel Loureiro nos seus artigos.
Mas a própria Rosa Luxemburgo também tem a palavra. Em relação à primeira edição, foram acrescentados três textos curtos: a carta “Segredos de um pátio de prisão“ (1917), cuja força lírica é profundamente impressionante, “A tática da revolução“ (1906) e por fim a “Carta aberta aos amigos políticos: sobre cisão, unidade e saída“ (1917), em que polemiza com a social-democracia alemã. Por causa da guinada nacionalista dos socialistas europeus, contra a qual Rosa Luxemburgo, Jean Jaurès e muitos outros resistiram inutilmente, a Primeira Guerra Mundial não pôde ser evitada. Esse pecado original dos social-democratas levou à cisão do movimento operário, pavimentando o caminho para o fascismo de Hitler. Além disso, alguns poderão fazer paralelos com a miséria da atual social-democracia na Europa…
Neste contexto, vale particularmente a pena reler a brochura “A revolução russa“, aqui publicada na íntegra, que Rosa Luxemburgo elaborou em setembro de 1918 na prisão de Breslau (Wrocław), ou seja, um ano e meio depois da Revolução de Fevereiro de 1917 e um ano depois da tomada do poder pelos bolcheviques e que só foi publicada postumamente, pela primeira vez, em 1922, pelo seu companheiro de partido, Paul Levi. Na RDA “A revolução russa“ só veio a público em 1975, acompanhada das habituais referências aos “erros“ supostamente nela contidos, e mesmo em Moscou somente em 1990. Só quando a esquerda entender, com Luxemburgo, que, em última análise, o socialismo real fracassou por causa da falta de liberdade e democracia já no início, terá ela uma chance de sair da defensiva em que se encontra há décadas.
Pelo menos tão importante quanto o conteúdo, que em muitos artigos de Luxemburgo tem apenas interesse histórico, é seu método. Frigga Haug defende que com ela «… se aprenda como estudar os acontecimentos mundiais, como os relata, com que métodos decompõe os eventos, como liga as doutrinas com as ideias comuns da população e, assim, como ela encoraja a pensar criticamente com a própria cabeça. Por isso, devemos analisar seu método de exposição, de educação popular e de agitação.»
Nesta linha, se poderiam estabelecer conexões produtivas entre as suas ponderações em “Greve de massas, partido e sindicatos“, sobre os acontecimentos da primeira Revolução Russa de 1905, e as jornadas de junho de 2013, no Brasil. Como se apresentam hoje as relações entre partidos, sindicatos e movimentos de massa? Teremos que pensar em formas criativas de reconstruí-las, reempoderando as bases?
Seria igualmente um exercício ocioso, segundo Haug, examinar se Rosa Luxemburgo poderia ser chamada de feminista; em vez disso, deveriamos examinar se dos seus escritos de combate pelos direitos humanos em geral haveria algo a obter para a emancipação das mulheres. O mesmo se aplica a outras questões, como o seu amor pela natureza, mas lendo as cartas “Segredos de um pátio de prisão“, publicada aqui por primeira vez em português, e a clássica “Meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido…”, não é descabido imaginar Rosa como cúmplice das lutas socioambientais do século XXI…
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Para nós, do escritório regional da Fundação Rosa Luxemburg no Brasil e Cone Sul, é, ao mesmo tempo, uma honra e um compromisso trabalhar em nome da grande socialista. Desde São Paulo e Buenos Aires construímos junto com nossos parceiros no Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina e Chile projetos de formação política e apoiamos a resistência de muitas pessoas contra o modelo predatório capitalista e extrativista. Nesse sentido, não se trata apenas de um compromisso com o socialismo democrático e os direitos humanos, mas também com os direitos da natureza. Nós acreditamos que a luta contra a destruição dos fundamentos da vida contém o potencial para aquelas alianças sociais amplas que são necessárias para mostrar de novo limites ao modelo econômico capitalista, se não mesmo para superá-lo.
A Fundação Rosa Luxemburg, próxima do partido alemão Die Linke (A Esquerda), foi fundada em 1990. Como um dos 18 escritórios criados fora da Alemanha, nos vemos na tradição internacionalista de Rosa Luxemburgo, numa rota de equilíbrio nem sempre fácil entre a adaptação social-democrata ao sistema e os dogmatismos da velha esquerda.
Last but not least, um agradecimento: Isabel Loureiro, que há décadas divulga a obra de Rosa Luxemburgo no Brasil como ninguém mais, recentemente com uma maravilhosa edição em três volumes de escritos escolhidos[3] também esteve significativamente envolvida neste livro: autora, tradutora, revisora e presença inspiradora – como tantas vezes desde que a Fundação Rosa Luxemburgo abriu seu escritório regional em São Paulo, em 2003.
Em inúmeras publicações e seminários, quer na Escola Nacional Florestan Fernandes em Guararema, quer na sede da Fundação no bairro paulistano de Pinheiros, a filósofa falou sobre a vida, a obra e a atualidade de Rosa. Desde 2009, a maior sala de seminários da escola do MST tem o nome de Rosa Luxemburgo, da pensadora e militante avessa a todo dogmatismo, e o curso de 10 semanas que Isabel Loureiro ministrou em 2013 em São Paulo foi um dos destaques dos últimos anos. Obrigado, Bel!
 
[1] FRL, São Paulo, 2008/2009.
[2] Frigga Haug, Rosa Luxemburg und die Kunst der Politik (Rosa Luxemburgo e a arte da política), Hamburg 2007.
[3] Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos e cartas, São Paulo: Editora UNESP 2011.
 
*FRL, diretor do escritório regional Brasil/Cone Sul; Prólogo de Rosa Luxemburgo ou o preço da liberdade, organizado por Jörn Schütrumpf, 2° edição brasileira 2015, lançamento 27 de março
 

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