Terra Preta, o legado indígena que poderia transformar a Amazônia

Gerado a partir da ocupação indígena milenar do território amazônico, um dos solos mais férteis do mundo tem potencial desprezado e se perde com grandes projetos

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Bacia do rio Tapajós, no Pará, tem uma das maiores manchas de Terra Preta do estado. Foto: Mauricio Torres

Por Verena Glass
A relação parasitária adotada pelo Estado brasileiro e pelo chamado setor produtivo com a Amazônia, no sentido de que as principais atividades econômicas nela desenvolvidas visam o usufruto e/ou o benefício de terceiros (não amazônidas),  pode destruir uma das mais preciosas (e desconhecidas) potencialidades da região: a Terra Preta.
Invisibilizada a delicada dinâmica de seu metabolismo socioambiental, a região é tratada, grosso modo, como “fornecedora” – de borracha, de minério, de madeira, de carne, de soja, de hidroeletricidade, de agrocombustível de dendê, de petróleo e de commodities da economia verde (créditos de carbono, serviços ambientais, etc) -, impossibilitando virtualmente a preservação de um legado histórico de seus primeiros habitantes que poderia, se devidamente respeitado e valorizado, escrever um outro futuro  para os amazônidas dos tempos atuais.
O longo ciclo de saques, violência e empobrecimento da Amazônia, iniciado pelos primeiros colonizadores que nela botaram os pés, tem ofuscado o fato de que, como aponta a pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), Dirse Kern, historicamente a região foi ocupada por uma grande variedade de povos e culturas em uma longa e dinâmica trajetória de desenvolvimento. Sub-investigado mas nem por isso menos relevante, um dos vestígios desta milenar e profícua ocupação é a chamada Terra Preta de Índio (ou Terra Preta Arqueológica), considerada um dos solos mais férteis do mundo e encontrada em grandes manchas na Amazônia brasileira, colombiana, equatoriana, peruana, venezuelana e guianense.
Por sua impar importância arqueológica, social, cultural e econômica – e, porque não dizer, pelo pouco que se sabe dela fora da Amazônia -, a Terra Preta foi tema de uma roda de conversa proposta pela Fundação Rosa Luxemburgo e pelo Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade no marco do IX Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), ocorrido de 28 de setembro a 1º de outubro em Belém. Além de Dirse Kern, participaram do debate o arqueólogo Morgan Schmidt, também do Museu Emilio Goeldi, e o agricultor Francisco Firmino da Silva, o Seu Chico Caititu, morador da comunidade Montanha Mangabal às margens do rio Tapajós[1].
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Morgan Schmidt, Dirse Kern, Verena Glass e Chico Caititu em evento no IX CBA. Foto: Leonardo Melgarejo

De acordo com os pesquisadores do MPEG, a Terra Preta tem duas características elementares: a composição química, que lhe confere uma fertilidade excepcional em função dos altos índices de magnésio, fósforo, zinco, manganês, cálcio, potássio e carbono orgânico, e o processo de produção deste substrato, baseado na centenar ocupação humana dos territórios amazônidas e no impacto transformador do ambiente deste ciclo de antropização. Ou seja, formadas principalmente a partir de material orgânico decomposto, as Terras Pretas são compostas de cinzas, carvão, resíduos de peixes, caça, conchas, cerâmicas, dejetos humanos, folhas de palmeiras utilizadas na cobertura de habitações, etc.
“A Amazônia era intensamente povoada a cerca de 2.500 anos atrás, período do qual data, em média, a Terra Preta Arqueológica”, explica Dirse Kern. Segundo ela, o hábito de fazer “lixeiras” onde eram depositados e se acumulavam os restos orgânicos da vida cotidiana das populações indígenas, por vezes levava as aldeias a se deslocarem para outros locais, permitindo a formação destas grandes áreas de composto, já utilizados naquela época para a prática agrícola. “A Terra Preta que conhecemos hoje é fruto do lixo dos povos daqueles tempos”, explica a pesquisadora.
Morgan Schmidt, que estudou a Terra Preta no território dos indígenas Kuikuro, no Alto Xingu, detectou que ainda hoje as aldeias se localizam de forma relacionada às manchas do substrato, reproduzindo inclusive o mesmo modo de ocupação territorial que as formou a mais de mil anos atrás. “Atualmente os Kuikuro utilizam as manchas de Terra Preta para agricultura – principalmente milho – em áreas distantes até 20 km de suas aldeias. Mas o importante é observar que os indígenas em geral continuam produzindo Terra Preta até hoje, através da produção de lixeiras que acumulam os resíduos de alimentos, de cinzas, da construção de canoas, dos dejetos humanos, dos restos de artesanato, etc. É um processo continuo de atividades que enriquecem o solo”, explica o pesquisador.
“Tudo dá”. Por enquanto…
Estima-se que a Amazônia tenha cerca 6 milhões de quilômetros quadrados de Terra Preta, que cobrem regiões importantes dos estados do Pará, Amazonas e Rondônia. Uma das maiores manchas deste solo está localizada na bacia do rio Tapajós, no Pará, território dos indígenas Munduruku e onde também está localizada a comunidade de Montanha Mangabal, onde vive seu Chico Caititu.
Aos 66 anos, seu Chico é um dos mais experientes, respeitados e queridos mateiros do Tapajós. Autoidentificado como ex-um-monte-de-coisas – “seringueiro, caçador, garimpeiro, etc” -, o agricultor tem sido um dos principais apoiadores e assessores dos Munduruku no processo de luta pela demarcação de suas áreas – o que inclui o reconhecimento das manchas de Terra Preta como prova da ocupação ancestral do território -, muito em função do profundo conhecimento sobre a região.
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Seu Chico Caititu (direita) no processo de autodemarcação da TI Munduruku Sawre Muybu. Foto: Mauricio Torres

“Montanha Mangabal, onde eu vivo, é toda Terra Preta”, explica. “É uma terra que tem uma química exata, pura, dela mesma, produzida pelos índios que viveram aqui desde sempre, e a grande vantagem é que absolutamente tudo que se planta nela dá sem nenhuma necessidade de adubação. E se eu quero fazer uma horta, um jardim, pego um pouco de terra preta, jogo lá e pronto, não preciso de mais nada”.
De acordo com seu Chico, tanto os ribeirinhos quanto os indígenas da região têm desenvolvido uma agricultura extremamente produtiva – mesmo que voltada à subsistência em função das dificuldades de escoamento -, que inclui grãos, mandioca, pimenta e todas as variedades de frutas. “Mamão, por exemplo, dá tanto em Terra Preta que a gente é obrigado a roçar. Parece mato. Mas eu acho muito importante dizer que a gente, que vive nessa região e planta como a gente planta, tem a grande vantagem de comer apenas comida saudável, sem veneno, e que não dá muito trabalho nem gasta dinheiro. Eu sei que se viessem os gaúchos e plantassem soja, iam economizar muito com adubo. Mas não é isso que pode ser, já temos obra demais, projeto demais, cidade demais em cima da Terra Preta, estragando o que poderia ser a nossa maior riqueza”.
De acordo com o agricultor, a luta pela demarcação e preservação dos territórios tradicionais para usufruto da população local é, nesse sentido, uma luta pela preservação de um dos mais preciosos elementos para um desenvolvimento distinto da Amazônia. “Vem o governo e quer fazer hidrelétrica, que vai inundar toda nossa Terra Preta; faz estrada, faz portos, muda tudo, e estraga pra sempre o que é a nossa maior riqueza. Muda o curso dos rios, altera os ciclos de enchente e vazante, vai matando os peixes, a possibilidade de plantar nas várzeas, e chama isso de desenvolvimento. Não sabe de nada, o governo!”, diz seu Chico, que tem feito do processo de autodemarcação da Terra Indígena Sawre Muybu, ameaçada pelo projeto da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, na região de Itaituba, sua principal missão, ao lado dos amigos Munduruku.
A preocupação com a perda de um enorme potencial de desenvolvimento adequado às características amazônicas não é apenas do agricultor. Segundo analisa Dirse Kern no artigo «O solo como registro da ocupação humana pré-histórica na Amazônia», de fato “a concepção de baixo potencial agrícola da Amazônia devido ao predomínio de solos ácidos e pobres em nutrientes (principalmente Latossolos e Argissolos), possibilitando apenas o cultivo itinerante e um desenvolvimento cultural limitado, não encontra suporte”.
De acordo com a pesquisadora, “na realidade, o potencial agrícola (ou ambiental) não é algo inerente à natureza e independente da cultura dos seus habitantes. A agricultura, por ser um fenômeno cultural, implica que o potencial agrícola é em parte determinado culturalmente, envolvendo uma interação entre tecnologia e ambiente (Denevan, 2001). A ocorrência de solos TP (Terra Preta) e TM (Terra Mulata) em grandes extensões evidencia que na Amazônia pré-histórica havia assentamentos densos e estáveis fazendo uso de sistemas agrícolas sustentáveis. Se foi assim no passado, o mesmo pode ser possível na atualidade. Essas técnicas antigas podem orientar processos modernos, possibilitando soluções alternativas para pequenos agricultores quanto ao manejo de solos com baixa fertilidade e baixa capacidade de produção. O modelo de desenvolvimento sustentável das TPs supõe uma grande estabilidade dos assentamentos, a preservação da cobertura vegetal e a execução de trabalhos contínuos de melhoramento do solo, com policultivos de grãos, tubérculos e arbóreas frutíferas”.
[1] Dirse Kern é geoarqueologa com mestrado em solos, doutorado em geoquímica de Terra Preta e pós-doutorado em mineralogia de cerâmica arqueológica. Morgan Schmidt é doutor em geografia pela universidade da Flórida (EUA), arqueólogo e pesquisador do departamento de Ciências Humanas do Museu Paraense Emilio Goeldi. Francisco Firmino da Silva, o Seu Chico Caititu, é agricultor, mateiro e sábio.
Leia também: O presente de Karo Ebak aos Munduruku

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