O mais básico e intuitivo dos direitos, a Consulta Prévia é violada pelo Estado

Grandes empreendimentos, como os planejados na bacia do rio Tapajós, no Pará, levam a uma sistemática violação da legislação nacional e internacional no tocante ao direito à oitiva em casos de impactos sobre seus territórios
Quilombolas fazem paralelo entre o Porto do Maicá e o terminal construído pela Cargil no começo da década. (Foto: Lilo Clareto / Repórter Brasil)
Terminal construído pela Cargill no começo da década em Santarém. (Foto: Lilo Clareto / Repórter Brasil)
Por alguns instantes, imagine que importantes decisões da sua vida sejam tomadas por terceiros. Decisões determinantes para o seu futuro são tomadas por pessoas que pouco ou nada conhecem sobre sua realidade, preferências, projetos e interesses, sem que você tenha o direito sequer de participar. A descrição certamente lhe pareceu aflitiva, afinal, todos queremos ter o controle sobre nossas próprias vidas. Ninguém melhor do que nós mesmos para conhecer nossas preferências, gostos e projetos, e decidir sobre nossos destinos.
Este tipo de situação foi e é recorrente nas trajetórias dos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Estes grupos mantêm relações diferenciadas com o espaço onde vivem. Sua alimentação, educação, saúde, lazer e cosmologia estão intimamente relacionados ao território que ocupam e à natureza que transformam e utilizam.
Apesar disso, com grande frequência, estes grupos se veem afetados por decisões oriundas dos centros de poder político, debatidas em salas refrigeradas de empresas e governos, por pessoas engravatadas, bastante alheias e insensíveis aos contextos locais.

Processo deste gênero está em curso na bacia do rio Tapajós, oeste do estado do Pará. A bacia está na mira dos grandes empreendimentos e, embora estejamos falando de uma região bastante diversa social e culturalmente, o que temos acompanhado é a negação sistemática do direito à consulta prévia dos grupos afetados. Mesmo quando reconhecida judicialmente, algumas práticas e interpretações restritivas acerca da consulta prévia limitam a possibilidade de os grupos afetados influenciarem a tomada de decisão.
A cobiça sobre o Tapajós
A bacia do rio Tapajós, oeste do Pará, está na mira dos mais poderosos setores políticos e empresariais nacionais e transnacionais. São muitas as pretensões geopolíticas e econômicas sobre a região, que está na confluência de três macroprojetos político e econômicos: a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), o Programa de Investimento em Logística (PIL) e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Articulados, os programas visam reunir as condições logísticas e de infraestrutura para o avanço da fronteira econômica sobre a bacia do Tapajós: abertura de novos territórios percebidos como disponíveis à atividade agropecuária, com energia barata e em abundância para exploração mineral e para indústrias eletrointensivas, além de vias de escoamento das commodities produzidas no centro-oeste.
Estes empreendimentos são chamados de projetos extrativos e são voltados para exploração exaustiva de territórios e recursos naturais, possuindo uma cadeia produtiva altamente impactante, desde a extração do recurso até o seu descarte. São exemplos de projetos extrativos a exploração minerária, madeireira e petrolífera, assim como toda infraestrutura necessária para viabilizar a exploração, como as vias de escoamento (rodovias, ferrovias e hidrovias) e as fontes de energia (hidrelétricas e termelétricas).
Empreendimentos de diversas naturezas são planejados ou estão sendo implantados na bacia do rio Tapajós, dentre hidrelétricas, portos, hidrovia, ferrovia, concessões florestais e exploração minerária. Estes empreendimentos impactam os territórios tradicionais dos grupos étnicos, suas dinâmicas sociais sofrem alterações sensíveis, há um incremento dos conflitos agrários e invasões de terra, e em muitos casos estes grupos tornam-se “refugiados do desenvolvimento”, na justa expressão do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Indígenas Munduruku durante oficina sobre a consulta prévia. Foto: Gabriel Bicho/Greenpeace
Indígenas Munduruku durante oficina sobre a consulta prévia. (Foto: Gabriel Bicho/Greenpeace)

Estes grupos estão sendo excluídos dos processos de decisão, embora, desde meados de 2003, o Estado brasileiro esteja obrigado por um tratado internacional, a Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho, a consultar os “povos indígenas e tribais” sempre que sejam previstas medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetá-los. É o chamado direito à consulta prévia, livre e informada.

Costumo dizer que a consulta prévia é o mais básico e intuitivo dos direitos. Não deveria ser preciso existir uma lei para obrigar que o Estado consulte um povo antes de intervir drasticamente em sua vida. É o mínimo de respeito e de reconhecimento à existência destes grupos. Apesar disso, o Estado brasileiro resiste em implementá-la adequadamente. Utilizo para exemplificar minha conclusão os casos da Hidrovia Tapajós-Teles Pires-Juruena e da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.
A Hidrovia Tapajós-Teles Pires-Juruena
Atualmente, os grãos produzidos na região Centro-Oeste são exportados para a Europa e Ásia através dos portos de Santos e de Paranaguá, nos estados de São Paulo e Paraná, respectivamente. A expectativa do setor agropecuarista é encurtar o caminho e os custos da exportação através da implantação de um transporte multimodal que permita o escoamento dos produtos agrícolas pelo norte do país, preferencialmente por via fluvial com a Hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós.
A Hidrovia permitiria interligar Sinop, Sorriso e Alta Floresta – principais municípios sojeiros do país – a um conjunto de portos no Norte, mais próximos dos centros importadores (Estados Unidos, Europa e Ásia).
Os grãos saem do centro-oeste através da BR-163 e, em um futuro próximo, também através da ferrovia “Ferrogrão” (prevista para ser licitada ao final de 2016) até as estações de transbordo de carga (ETC) de Miritituba, distrito de Itaituba. A partir de Miritituba, os grãos seguem pelos rios Tapajós e Amazonas, em barcaças, até portos de maior envergadura, em Santarém (Terminal Graneleiro da Cargill), Barcarena (Terminal Portuário Graneleiro de Barcarena) e Santana (Porto de Santana), no estado do Amapá.
A viabilização da Hidrovia Tapajós-Teles Pires-Juruena, portanto, envolve a construção de diversas obras de infraestrutura, em especial portos e intervenções físicas sobre o rio (dragagem, derrocamento de pedrais e sinalização). Cada um desses empreendimentos está sendo licenciado isoladamente pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará.

Quilombolas vivem da pesca no rio Amazonas, onde deve ser construído o porto. Foto: Mikaell Carvalho
Quilombolas de Santarém conseguiram adiar a construção do porto e Maicá até que sejam consultados pelo governo (Foto: Mikaell Carvalho / Repórter Brasil)

A fragmentação invisibiliza os impactos sinérgicos e cumulativos dos projetos e desconsidera a hidrovia como um projeto próprio, capaz de impactar direta e indiretamente grupos étnicos ao longo de todo o seu percurso.

O Ministério Público do Estado em Santarém e o Ministério Público Federal denunciaram à Justiça Federal a ausência de Avaliação Ambiental Integrada (espécie de estudo de impacto que considera os impactos cumulativos e sinérgicos dos empreendimentos), bem como a inobservância da consulta prévia, livre e informada aos povos afetados pela construção dos portos em Miritituba, município de Itaituba, e no Lago do Maicá, município de Santarém.
No primeiro caso, os Portos construídos e em construção afetarão o povo indígena Munduruku, comunidades tradicionais ribeirinhas e garimpeiros artesanais. No segundo, afetará sete comunidades quilombolas, o povo indígena Munduruku do Planalto Santareno e comunidades de pescadores artesanais.
Em ambos os casos, a Justiça Federal reconheceu que o órgão licenciador omitiu-se indevidamente ao não exigir a realização de consulta prévia. Em Miritituba, as ETCs Bunge e Cargill estão em operação, ao passo que as ETCs Miritituba (Rio Turia Serviços Logísticos Ltda.), HBSA Tapajós (Hidrovias Brasil – Miritituba S.A.) e Itaituba (Cianport – Companhia de Navegação Ltda.) estão sendo licenciadas.
Em Santarém, três portos estão sendo licenciados no Lago do Maicá, dentre eles, o porto da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), com licenciamento mais avançado.
O direito à consulta prévia vem sendo postergado indevidamente. As decisões são tomadas desconsiderando a manifestação dos grupos afetados. Em Miritituba, há dois portos em operação, o que frustra o caráter prévio que deveria nortear o diálogo.
Outra limitação, relacionada à fragmentação do licenciamento, é a desconsideração da Hidrovia enquanto um projeto autônomo, que demanda processo específico de consulta prévia. Como resultado, tem-se que diversos povos ao longo da calha do rio Tapajós não foram consultados previamente acerca da Hidrovia, embora estejam sendo afetados pelo crescente fluxo de embarcações na região, além de sofrerem impactos conexos, como o aumento dos conflitos fundiários e expansão do monocultivo de soja.
Usina de São Luiz do Tapajós
A Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós está projetada para o médio curso do rio Tapajós, 330 quilômetros acima da foz no rio Amazonas, distante 65 quilômetros da zona urbana do município de Itaituba, estado do Pará. Com um reservatório estimado em 729 quilômetros quadrados e barramento de 8 quilômetros de extensão, deveria gerar em média 4.012 MW, com custo estimado inicialmente em 30 bilhões de reais.
A hidrelétrica afetaria diretamente o povo indígena Munduruku, alagando e removendo três aldeias da Terra Indígena Sawré Muybu, o que é vedado pelo artigo 231, §3º da Constituição Federal. Também seriam afetadas diretamente as comunidades tradicionais ribeirinhas de Montanha e Mangabal, São Luiz e Pimental.
Após muitas idas e vindas, pressão de diversos setores da população, em especial dos Munduruku e ribeirinhos do Tapajós, pareceres técnicos da Funai contrários à emissão de licença, e recomendação do Ministério Público Federal, o Ibama arquivou o licenciamento da Usina, por entender que ela seria inconstitucional ao remover os Munduruku dos seus territórios tradicionalmente ocupados, bem como os estudos não terem sido capazes de assegurar a viabilidade socioambiental do empreendimento.

gilberto carvalho
Indígenas munduruku, entre outras etnias, reunem-se com Gilberto Carvalho, então ministro da Secretaria Geral da Presidência

Embora o projeto tenha sido arquivado, ao longo do licenciamento foram observadas muitas violações ao direito à consulta, as quais passo a enumerar:

1. Exclusão dos povos e comunidades tradicionais do processo de consulta. Desde o princípio, o governo explicitou que não havia consenso quanto à aplicabilidade do direito à consulta prévia às comunidades ribeirinhas.
2. Postergação da consulta e decisão consumada. O licenciamento avançou, a Eletrobrás solicitou Licença Prévia ao Ibama (apesar de haver uma decisão judicial que impede a emissão de qualquer licença antes da consulta prévia) e o Ministério de Minas e Energia chegou agendar o Leilão da Usina para o final de 2014, sem que a consulta tivesse sido sequer iniciada. O governo deixou claro em diversos momentos que a decisão de construir a Usina era irreversível e inegociável, o que retira qualquer possibilidade de os grupos afetados incidirem na tomada de decisão.
3. Militarização das reuniões. Os Munduruku não aceitaram que técnicos realizassem estudos de impacto em seus territórios sem que o governo os tivesse consultado. Por isso, expulsaram duas expedições que coletavam amostras no entorno das terras indígenas sem sua autorização. O governo federal alterou mediante decreto a atribuição da Força Nacional de Segurança Pública, permitindo que a instituição passasse a atuar em “operações ambientais”. Desde então, a continuidade dos estudos ambientais e todas as reuniões entre o governo federal e os Munduruku foram acompanhadas por forte contingente policial, o que frustra o caráter livre do diálogo.
4. Desrespeito à temporalidade dos Munduruku. A primeira decisão judicial que reconheceu a consulta prévia aos povos indígenas e tribais afetados pela UHE São Luiz do Tapajós foi proferida em outubro de 2011. O governo federal teve tempo suficiente para se organizar e conduzir um processo de consulta efetivo e adequado. Não foi o que ocorreu, e o governo alternou longos períodos sem qualquer reunião, com períodos de reuniões muito concentradas. Em setembro de 2014, o governo federal apresentou um cronograma em que a consulta seria concluída em 45 dias.
Os Munduruku consideraram o prazo impraticável e expuseram ao governo sua inconformidade com o processo de consulta enviesado, que não garantiria sua participação efetiva. Reivindicaram maior tempo para discutirem internamente a Convenção nº. 169 e o direito à consulta prévia. Em dezembro de 2014, os Munduruku concluem o Protocolo de Consulta Munduruku, no qual explicitam ao governo como deverá ser uma consulta que atente às normas internacionais, assim como às suas especificidades culturais. O governo federal, no entanto, passou a alegar judicialmente que os Munduruku não queriam ser consultados.
Os casos discutidos revelam interpretações limitadas acerca do objetivo e do alcance do direito à consulta prévia no Brasil. Quando se trata de projetos envolvidos em grandes interesses econômicos, os governos parecem pouco distantes de conduzirem um processo de consulta realmente democrático, que garanta aos povos afetados a possibilidade de decidirem sobre seus destinos.
Em se tratando especificamente da bacia do rio Tapajós, outra discussão urgente e importante é a de que os processos de consulta pontuais não eximem o governo de submeter à participação dos grupos étnicos o próprio padrão de desenvolvimento que está sendo imposto à região, uma vez que a própria Convenção nº. 169 não prevê apenas a participação em projetos específicos, mas também a discussão do modelo mais amplo. Em outras palavras, os grupos étnicos do Tapajós possuem o direito de decidir coletivamente os rumos da região em que vivem.
*Rodrigo Oliveira é mestre em Direitos Humanos, assessor do Ministério Público Federal em Santarém e colaborador do Centro de Información de la Consulta Previa