Quem são os chineses de olho na Amazônia?

Empresa chinesa com rastro de violação de direitos humanos quer construir a usina de São Luiz do Tapajós, a maior polêmica ambiental desde Belo Monte
Por Piero Locatelli, da Repórter Brasil*
A derrocada de empresas brasileiras com a Lava Jato, a desvalorização do real e o crédito caro no Brasil abriram espaço para que empresas chinesas galgassem uma participação maior no país. Aproveitando esse contexto, a China Three Gorges se prepara para fazer uma oferta no leilão da usina de São Luiz do Tapajós. Com 6.133 megawatts de potência máxima instalada, custo estimado em R$ 23 bilhões e o licenciamento ambiental mais polêmico desde Belo Monte, a maior hidrelétrica planejada pelo Governo Federal para as próximas décadas pode ser construída por uma empresa chinesa que carrega um lastro de violações de direitos humanos.

O preparo de uma “oferta competitiva” pela hidrelétrica está no relatório anual da empresa. O presidente da China Three Gorges Brasil, Li Yinsheng, afirma que a decisão apenas será tomada após ter conhecimento das condições de oferta do leilão. “A CTG [China Three Gorges ] escolheu o Brasil como um país prioritário em sua estratégia de expansão internacional. A empresa está olhando todas as oportunidades no país”, escreveu o executivo por e-mail.
O interesse das empresas chinesas no setor elétrico brasileiro é confirmado por Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil China, que auxilia empresas chinesas interessadas em investir no Brasil. “Com ou sem Lava Jato, a China investe aqui por várias razões: ocupar mercado, ter lucro, exportar sua capacidade excedente e assegurar recursos estratégicos, e por razões geopolíticas internacionais,” diz Tang. Entre os projetos auxiliados por ele, estão o de uma hidrelétrica, um parque eólico e o a participação em duas termelétricas. Ele alega que não pode dizer quais são essas empresas, devido ao sigilo mantido pela Câmara.
Antes de entender os interesses dessas empresas no Brasil, é necessário entender por que o setor hidrelétrico chinês está atravessando as fronteiras do país, diz Stephanie Jensen-Cormier, diretora da ONG International Rivers em Beijing. A China, segundo ela, tem mais de metade das grandes hidrelétricas do mundo, mais do que o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá combinados. Por isso, agora suas empresas precisam expandir para fora do país. “As empresas estatais chinesas ficaram muito sofisticadas e competitivas na construção de grandes projetos hidrelétricos. Elas estão envolvidas em mais de 330 projetos em 85 países. A maioria deles é no sudeste asiático, mas o número está crescendo,” diz Stephanie.

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Interesses amazônicos
A construção de usinas no Tapajós pode estar articulada com outros interesses chineses na região. A energia de baixo custo poderia ajudar o estabelecimento de projetos de mineração, outro setor de interesse dos chineses, segundo o livro “O Brasil Made in China”, da socióloga Camila Moreno. A autora aponta que o Tapajós abriga reservas minerais cada vez mais procuradas pelo país asiático. “Nos últimos anos, houve uma disparada na descoberta de novos garimpos, e atualmente a região é a grande promessa de fronteira para exploração de diamantes.”
Associadas à construção de eclusas, a série de usinas poderia, ainda, baratear o escoamento da soja brasileira comprada pelos chineses. A hidrovia Tapajós-Teles Pires ligaria as plantações de soja do Mato Grosso por via fluvial até o rio Amazonas, que por sua vez desemboca no porto internacional de Belém, no oceano Atlântico. O novo projeto também poderia ser complementado com o canal da Nicarágua, que a China trabalha para abrir naquele país , ligando os oceanos Atlântico e Pacífico e encurtando a rota da soja brasileira até a Ásia.
Rio Teles Pires faz parte dos planos chineses. Foto: Divulgação/Presidência da República
Além da integração pelos rios da região, a China também avança com outros corredores de exportação por terra. As estatais chinesas Cheng Dong International e  China Harbour tem o projeto de interligar o Suriname a Manaus, incluindo um porto de águas profundas, uma rodovia e uma ferrovia, reduzindo a necessidade de navegação fluvial. A autora afirma que esses investimentos sinalizam a entrada definitiva da China na região Amazônica.
O presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil China afirma que os investimentos de hidrelétricas, hidrovias e mineração na região não necessariamente estão interligados. Charles Tang diz que, na maioria dos casos, as empresas investem somente devido ao bom retorno de um projeto. Mas isso não excluiria a cooperação e parcerias estratégicas entre elas, já que todas têm o mesmo dono: o governo chinês.
 
Expansão chinesa
A Three Gorges já é a sexta maior operadora de energia no Brasil, com 6,89 megawatts de capacidade instalada, o suficiente para abastecer o Estado de Pernambuco. Sua expansão no Brasil deu um salto em novembro de 2015, quando ganhou a concessão das hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, que pertenciam à paulista Companhia Energética de São Paulo. A empresa chinesa pagou o valor mínimo da outorga, R$ 13,8 bilhões.
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A expansão no Brasil foi rápida. A Three Gorges entrou no país em 2011, e de maneira indireta. Foi quando a chinesa comprou a participação do governo português na Energias de Portugal (EDP), tornando-se a sua maior acionista, com 21,35% empresa. Assim, a Three Gorges herdou as obras de sete usinas hidrelétricas no Brasil.
Sua presença foi fortalecida em 2014, durante visita do presidente chinês Xi Jinping ao Brasil. Na ocasião, a empresa chinesa assinou um acordo cooperação-técnica com Eletrobras Furnas, empresa de economia mista e de capital aberto cujo controle acionário pertence ao governo do Brasil.
Acordo foi firmado em visita do presidente da China, Xi Jinping, ao Brasil
Foi quando se anunciou o interesse das duas empresas na hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Questionada, Furnas se limita a afirmar que o acordo prevê a construção da hidrelétrica de São Manoel (700 megawatts), que fica no rio Teles Pires, na divisa entre Pará e Mato Grosso. Em nota, a empresa brasileira declara que o acordo prevê “o desenvolvimento de novos projetos hidrelétricos no Brasil, bem como a cooperação técnica e a troca de tecnologias.” A empresa afirma ainda que “está prevista a possibilidade da participação de Furnas em novos empreendimentos de fontes alternativas de energia, sobretudo eólicas, no Brasil e na China.”
A Repórter Brasil pediu detalhes da cooperação entre as duas empresas e o acesso à íntegra do acordo, mas a empresa alegou que, por se tratar de informações empresariais, essa é uma “exceção prevista” na lei de acesso à informação.
Após o acordo com Furnas, a Three Gorges adquiriu em 2015 três empresas que pertenciam a Triunfo Participações e Investimentos, em um negócio que envolveu R$ 1,72 bilhão. Entre elas, estão as que operam a usina hidrelétrica de Salto(116 megawatts), em Goiás, e a usina hidrelétrica de Garibaldi (192 megawatts), em Santa Catarina.
A empresa opera ainda em cinco parques eólicos (328 megawatts), sendo que dois deles ainda estão em construção. Além disso, a Three Gorges também é responsável por cinquenta por cento da usina de Santo Antônio do Jari (373,4 megawatts) e Cachoeira Caldeirão (219,0 megawatts), ambas no Amapá
Em poucos anos, a Three Gorges tomou a frente de outra estatal chinesa no Brasil, a State Grid, que é a maior empresa do setor elétrico no mundo. A State Grid já havia feito uma expansão semelhante . Poucos anos depois de sua chegada, em 2010, adquiriu empresas que operavam no Brasil e a concessão de diferentes linhas de transmissão.
O maior salto aconteceu quando a State Grid venceu o leilão para construir o linhão de Belo Monte, a maior linha de transmissão do país. Parte da obra será feita pela chinesa junto às brasileiras Furnas e Eletronorte. Já a segunda parte da linha será feita com exclusividade pela chinesa.  Para construir essas obras, a empresa conta com o dinheiro do próprio governo brasileiro. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) pode financiar até 70% da obra, sendo parte dela com a Taxa de Juros de Longo Prazo, crédito subsidiado pelo governo com valor abaixo do mercado.
State Grid venceu primeiro leilão em 2013. Foto: Divulgação

Histórico de violações

A Three Gorges chegou ao Brasil quase vinte anos após ter sido fundada para a construção da maior hidrelétrica do mundo, a usina de Três Gargantas, no Rio Yangtze, na China. A hidrelétrica só foi inaugurada no final da década passada após mais de quinze anos de obras. Hoje a empresa tem negócios em mais de 40 países, com 89 obras em andamento, segundo seu relatório mais recente, referente a 2014.
Ainda na década de 90, entidades de direitos humanos já apontavam problemas nas atividades da Three Gorges. Em relatório de 1995, a Human Rights Watch afirmava que a obra era uma vitrine para a abertura e reforma da China, e “um modelo de como a falta de transparência e debate, processos de decisão autoritários e condições de trabalho injustas podem manchar um empreendimento ambicioso”.
Duas décadas depois, a companhia continua a ter problemas parecidos. A empresa cometeu violações de direitos humanos na construção da hidrelétrica de Murum, na Malásia, segundo relatório da ONG International Rivers, que acompanhou a obra em 2013. Segundo a organização, a população das vilas afetadas pela obra nunca foi visitada ou atendida em encontros com algum representante da empresa.
Esse histórico é especialmente preocupante para o Brasil, já que uma das maiores polêmicas em torno do licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós é justamente a violação dos direitos dos povos locais. O Ministério Público Federal do Pará já entrou com ações para pedir a suspensão do processo enquanto essas comunidades não forem consultadas sobre a obra, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
Questões trabalhistas envolvendo imigrantes também são um problema da empresa chinesa quando atuando na Malásia, segundo o relatório. Esse é outro elemento preocupante na Amazônia, onde as obras de grandes usinas atraem haitianos, africanos e migrantes de todo o Brasil.
 
Hidrelétrica de Murum, na Malásia. Foto: International Rivers
Na construção da usina chinesa na Malásia, trabalhadores indonésios reclamaram que seus passaportes foram retidos e as condições eram diferentes daquelas acordadas. Os indonésios também afirmaram que precisavam comprar seus próprios capacetes e botas de borracha, e que não possuíam seguro contra acidentes. Além disso, o atendimento médico no local não era gratuito.
Em e-mail enviado à reportagem, a Three Gorges afirma que, “além de suas políticas internas, a CTG segue todas as leis dos países em que atua. A empresa tem como premissa global o respeito às comunidades do entorno de suas usinas e o compromisso com o desenvolvimento das regiões onde atua.”

“Se o governo colocar padrões baixos, a companhia pode tentar se aproveitar dessa situação”

Apesar desse histórico de violações, a diretora da ONG na China diz que a empresa tem normas superiores a outras empresas do país.  “A China Three Gorges está ativa no Mercado internacional há mais de nove anos. Eles fazem projetos com padrões sociais e ambientais levemente melhores do que outras companhias chinesas.”
Segundo Stephanie, os brasileiros deveriam prestar atenção ao seu próprio governo e às empresas que vão se associar à Three Gorges. “Se o governo colocar um padrão alto, a Three Gorges vai fazer esforços para cumprir esse padrão mesmo que não seja fácil. Se o governo colocar padrões baixos, a companhia pode tentar se aproveitar dessa situação”, diz Stephanie. “Da mesma forma, parceiros locais têm grande impacto na performance da companhia em relação às leis e regulações locais”.
Ela usa como exemplo a construção da usina hidrelétrica Coca Codo Sinclair, no Equador, pela chinesa Sinohydro. Em um estudo comparativo entre sete usinas construídas por empresas chinesas estudadas pela International Rivers, esse foi o caso em que menos ocorreram violações de direitos. Isso teria acontecido graças às fortes leis locais, aplicadas de maneira adequada.
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Regras não cumpridas
Além das leis dos países que recebem os investimentos, outro fator de regulação importante são as regras dos financiadores. Diretora do China-Latin America Sustainable Investment Initiative (CLASII), centro de estudos baseado em Washington, Paulina Garzón diz que, em tese, as regras dos bancos chineses são boas. “Em teoria, o ordenamento jurídico ambiental é muito bom. Ele tem aspectos mais avançados do que outros bancos.”
Paulina cita como exemplo o Exim Bank, banco chinês de desenvolvimento voltado à promoção da importação e da exportação, possível financiador de futuras obras no Brasil. O banco exige um estudo de impacto de todos os investimentos feitos com o seu crédito, além de manter um registro do histórico de impactos socioambientais dos seus credores.            .
A aplicação das normas, porém, pode ser bem diferente do que está no papel. “O problema com as regras chinesas é que não há obrigações, não há muita informação disponível, não há comunicação com as comunidades para você saber o que está acontecendo”, diz ela, lamentando que o contato dos afetados com os órgãos e empresas chinesas é muito difícil.
Mesmo diante dessas restrições, ela ressalta que pressionar pelo cumprimento das regras para financiamentos chineses é uma ferramenta para que as empresas mantenham um bom padrão ao lado da ênfase nas regras dos próprios países.
Sem o cumprimento de todas as regras, chinesas e locais, comunidades na América Latina entraram em mais conflitos com empresas chinesas em 2015, segundo relatório elaborado por Garzón. Na Nicarágua, protestos pediram a revogação da concessão da construção do canal chinês. Na Argentina, foram questionados os acordos feitos com a China para a criação de bases de pesquisa na Patagônia e a construção de canais na província de Entre Rios. Já no Peru, os protestos contra a mineradora chinesa MMG levaram a morte de quatro pessoas. Por fim, movimentos indígenas têm questionado as atividades da Ecuacorrientes, também chinesa, na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O Tapajós pode ser mais um episódio nessa disputa. O Estudo de Impactos Ambientais, feito pela Eletrobras e outras empresas nacionais e internacionais, foi apresentado ao Ibama em agosto de 2014 e considerado inconsistente. Entidades de direitos humanos criticam o projeto e seus estudos, apontando diversos riscos não previstos, como o alagamento terras indígenas e a perda de peixes, essencial para a vida de ribeirinhos e indígenas na região.
O Ibama solicitou que o grupo refaça os estudos, mas o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, afirmou que a licença ambiental deve ser liberada ainda nos primeiros seis meses desse ano. Já o leilão deve ocorrer no semestre seguinte. A pressa do governo parece ser mais um fator para agravar os conflitos na região.
O licenciamento apressado da usina pode intensificar a colisão entre os interesses da construtora e os das comunidades locais, repetindo assim o que já aconteceu em outros lugares do Brasil e da América Latina. Considerando que os povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia já têm dificuldade de acessar os seus direitos quando impactadas por consórcios nacionais, como é o caso da usina de Belo Monte, o histórico socioambiental da Three Gorges é um grave alerta para o modo como serão conduzidas as grandes mudanças projetadas para o Tapajós.
 

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