Reflexões sobre uma viagem pelo sudeste do Pará no encalço das múltiplas desintegrações cometidas pela maior mineradora do mundo
Por Verena Glass, texto e fotos
Em uma manhã muito quente de agosto, um micro-ônibus deixou Marabá, no Pará, carregado de gente para uma viagem pelo sudeste do estado, no rastro das múltiplas desintegrações – de comunidades, de modos de vida, da sustentação, dos territórios, do trabalho, das matas e da terra – cometidas pela mineradora Vale; e também no rastro dos levantes ao longo dos trilhos que carregam para longe o minério de ferro de Carajás. A chamada Caravana Norte, organizada pela Rede Justiça nos Trilhos (fórum de organizações e movimentos sociais que atua junto a comunidades afetadas pela Vale), percorreu durante cinco dias os interiores de Marabá, Parauapebas, Canaã dos Carajás e Serra Pelada, tecendo uma espécie de fio condutor entre os vários aspectos da presença da Vale na região, que remonta à década de 1970.
Dos macroimpactos socioambientas do Projeto Grande Carajás, que inclui a mina de ferro Carajás no interior da Floresta Nacional (Flona) de mesmo nome, a hidrelétrica de Tucuruí no Pará, e a estrada de ferro que cruza o sudeste paraense e o estado do Maranhão de Cidelândia a São Luís, pouco já não foi falado. O que a Caravana proporcionou, no entanto, foi a configuração de diferentes situações em um quadro global dolorosamente representativo do reverso des-envolvimento patrocinado pela Vale, em um processo continuo de aprofundamento de danos.
Des-compensação
Ainda nas cercanias de Marabá, a primeira parada da Caravana foi na Terra Indígena (TI) Mãe Maria, para onde foram realocados à força os indígenas Akrãtikatêjê (Gavião da Montanha) após remoção de seu território durante a construção de Tucuruí na década de 1970. A TI – onde já viviam os Gavião Parkatejê e Gavião do Oeste -, é cortada pela estrada de ferro Carajás, atualmente em processo de duplicação.
Em Mãe Maria, além dos impactos da ferrovia, a perversidade da presença da Vale assumiu contornos maiores ao dar alma à máxima sobre “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Há anos, como forma de compensação pelos danos sofridos, os indígenas vinham recebendo da mineradora valores mensais que, apesar de fundamentais para a sustentação de projetos de saúde e educação, segundo relata uma liderança local “foi dinheiro que deixou o povo acomodado e as roças abandonadas, mudou nossa cultura e os hábitos alimentares”.
No início deste ano, após um protesto pela revisão do convênio com a Vale que interditou a ferrovia, a empresa decidiu romper unilateralmente o contrato e suspender o repasse de verbas, o que mergulhou as comunidades em uma profunda crise. “Estávamos mal com o dinheiro, estamos pior sem”, reflete a liderança Akrãtikatêjê. Agora, prossegue, a luta é pela reconstrução de uma unidade esfacelada pelo dinheiro, em torno de um novo projeto de dignidade e autonomia. “Precisamos nos reorganizar, refazer as roças, reaprender a viver do nosso jeito antigo. Mas ainda assim, precisamos do recurso…”.
Ferro
A segunda parada da Caravana foi em Parauapebas, à boca da maior mina de ferro à céu aberto do mundo, no interior da Flona Carajás. Criada em 1998, a Unidade de Conservação nasceu já em regime de exceção, uma vez que no decreto que a instituiu foi outorgada à recém-privatizada Vale o direito de lavra sobre todas as jazidas de minério (ferro, manganês, cobre, níquel e ouro) no seu interior. Ou seja, diferente das demais Florestas Nacionais, onde se permite legalmente a exploração dos recursos florestais de forma não impactante, a exploração mineraria, atividade intrinsecamente degradante dos solos e da vegetação local (um misto de floresta amazônica e cerrado, considerada de «extremamente alta prioridade para a conservação da biodiversidade brasileira»), foi definida como “sustentável”.
A Vale tem cindo jazidas em exploração no interior da Flona (N4E, N4W, N5E, N5W, N5 Sul). Em 2013, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu à mineradora a licença para uma nova mina – a S11D, “o maior projeto da história da Vale” -, prevista para entrar em operação em 2016; isso a despeito das nove autuações por infrações ambientais cometidas pela empresa entre 2005 e 2012, e do fato de, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, responsável pela administração da Flona, a Vale nunca ter pago as compensações ambientais pelos impactos não mitigáveis de suas atividades.
O malabarismo jurídico-ambiental que envolveu a criação da Flona Carajás, em contradição com a legislação ambiental e o ordenamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), leva a crer que seu proposito nunca foi a proteção da biodiversidade; se configura muito mais em uma manobra que reservou e deu exclusividade de exploração dos recursos minerais à Vale. Sem direito de apelação.
Fogo
Na terceira parada, a Caravana desceu aos trilhos da ferrovia Carajás no trecho que corta o assentamento Palmares, em Parauapebas. Ocupada por mais de 100 famílias do MST, a estrada de ferro naquele momento estava em chamas, como protesto e forma de pressão tanto sobre a Vale quanto sobre o governo federal, ambos em dívida com assentados e sem-terra.
De acordo com o movimento, os impactos dos trens da Vale que passam dia e noite e os linhões da empresa que atravessam os territórios de assentamento nunca foram compensados. O que se quer, explicaram os manifestantes, é o mínimo; asfaltamento de estradas, cercas às margens da ferrovia para evitar o atropelamento de animais, indenização pelos já mortos, túneis por baixo dos trilhos para possibilitar deslocamentos, indenização pelas minas de água destruídas. Do governo, se exige medidas definitivas de assentamento das famílias que continuam sem respostas nos 11 acampamentos da região. Demandas que existiram desde sempre e tempos passados e, na atual conjuntura, podem se perder num futuro sem horizonte se não permanecer acesa a obstinação da resistência, explicam os sem-terra.
Terra e trabalho
A quarta parada da Caravana foi nos arredores de Canaã dos Carajás, município onde a Vale explora a mina de cobre Vale do Sossego, e que engloba a área da Flona Carajás onde deve ser instalada a mina de ferro S11D. Reunidos no galpão da igreja da vila de Bom Jesus sob um calor causticante e abafado, moradores, agricultores, lideranças sindicais e comunitárias, e muitos desempregados, desfiam um rosário de penas relacionadas à atuação da mineradora na região.
Da contaminação dos rios e outras fontes de água pelos efluentes tóxicos de Sossego às enchentes causadas pelos seus dejetos; dos danos às estruturas de casas causadas pelas explosões na mina à “compra” compulsória de terras dos agricultores; do muito desemprego, crescente a cada mês em função de uma política de cortes de gastos e aumento de receitas da empresa, aos despejos forçados: de acordo com a população local, a Vale desgraçou a vida de muitos. “Eles usam ácido clorídrico e mercúrio na extração do cobre, vaza pros rios e mata tudo. Com as explosões na mina, até ovo de galinha não está chocando mais porque estoura junto”, diz seu Volnei, que, depois e anos trabalhando na mineradora, está desempregado.
Os desterros e despejos compulsórios, segundo os moradores de Bom Jesus, ocorreram tanto no processo de desapropriação das áreas onde a mina foi instalada, quanto nos arredores onde a empresa argumenta ter constituído sua reserva legal. E foi nestas áreas que dois grupos diferentes promoveram duas retomadas e montaram os acampamentos Grotão do Mutum e Planalto Serra Dourada. Ambas as áreas eram originalmente assentamentos do Incra – consequentemente terras da União -, e, apesar de declarar posse, a empresa não apresenta documentação de propriedade. Com seus 20 e tantos anos, Marcio resume: “como estou desempregado, ao invés de ficar em casa vendo TV vim pro acampamento fazer luta pelo que é nosso. E ver se, na nossa mão, a gente salva o pouco de mato e do rio Sossego que a Vale ainda não estragou”.
Buraco na terra e na alma
Serra Pelada, o formigueiro de gente que abismou o mundo ao ser exposto pelas lentes do fotógrafo Sebastião Salgado na década de 1980, foi a penúltima parada da Caravana, coroando de melancolia o recorrido dos últimos cinco dias. Talvez por ser domingo, ou talvez por simplesmente serem passagem de nada além de antigas memórias, as ruas empoeiradas de Serra Pelada estavam desertas. Ladeadas por casas de madeira que fazem lembrar os velhos filmes de faroeste, sua monotonia só é quebrada pela profusão de flores coloridas que transbordam aqui e ali dos pequenos jardins.
Depois do delírio da febre do ouro que marcou a vilazinha e a vida de milhares de garimpeiros, o enorme buraco cavado com pás e unhas para retirada do minério hoje é um lago tranquilo. Não sobrou nada de antigamente, diz um velho ex-garimpeiro que fumava solitário um palheiro na varanda de sua casa.
“E hoje, o senhor vive de que?”
“A gente veve de sonho, fia. A esperança já levaram faz tempo. Você não quer comprar a minha Kombi? Estou vendendo”
Em tese, toda região adjacente ao que foi o garimpo de Serra Pelada é de posse da Vale, que tira minério de ferro na Serra Leste. Não há muita relação entre a empresa e os habitantes da vila, que vive de ilusão, conta seu Pedro, gaúcho que chegou há tempos para fazer dinheiro, perdeu tudo e nunca partiu. A maior dessas ilusões, continua, é um enorme túnel de 2 km, oco e abandonado, escavado em 2010 para debaixo do caldeirão da mina original, hoje lago.
O buraco que leva para abaixo do outro buraco foi um projeto de parceria entre a cooperativa dos garimpeiros de Serra Pelada e a mineradora canadense Colossus Minerals. Havia uma estimativa de que as profundezas da terra ainda resguardam cerca de 50 toneladas de ouro. Mas os canadenses captaram uma dinheirama, aplicaram um tanto na escavação, enfiaram outro tanto no bolso e sumiram, contam dois garimpeiros que montam guarda nas ruínas do que sobrou da estrutura do projeto, na boca do túnel. “O pessoal da Colossus enganou os investidores e desapareceu. Hoje estamos tentando negociar a retomada dos trabalhos com uma empresa japonesas, temos esperança que isso aqui volte a funcionar. No meio tempo, montamos guarda”, diz o garimpeiro, enquanto cospe um caroço de jabuticaba, limpa as unhas com o canivete e deixa o olhar vagar para o nada.
Sob um calor escaldante de uma manhã de agosto, o micro-ônibus coberto de poeira deixou Serra Pelada carregado de gente rumo a Marabá. Faz uma pequena parada na Curva do S, onde há 19 anos a polícia matou 19 sem-terra para liberar o trafego para a Vale na rodovia que liga Eldorado dos Carajás a Marabá, ocupada naquele 17 de abril de 1996 pelo MST em luta por reforma agrária. Silenciosa, a Caravana faz uma prece de cabeça baixa, e segue seu rumo.
Depois de tanto “sem” – compensação, direitos ambientais, direitos sociais, terra, trabalho e esperança – no caminho da Caravana, uma ideia renitente toma o pensamento: que a única reparação para tanta terra e gente arrasadas ao longo de anos e anos de desmantelo é um último e grande «sem»: sem Vale, mineradora, mineração. Porque desenvolvimento não é isso. É outra coisa.
A Caravana Norte fez parte do projeto de parceria da Fundação Rosa Luxemburgo com a Rede Justiça nos Trilhos. Para mais informações sobre a atuação da Vale e os impactos do Complexo Grande Carajás, clique aquí