Por Daniel Santini
Nas reconfigurações do capitalismo, o Brasil deve abraçar ou combater o modelo de desenvolvimento chinês? Debate entre especialistas com visões opostas marcam lançamento de livro sobre o tema
Cidades com prédios e mais prédios de mais de cinquenta andares, com milhões de moradores concentrados em um processo de urbanização aceleradíssimo, industrialização massiva com consumo crescente, megaprojetos de infraestrutura de logística, transporte e geração de energia, tudo alimentado por redes de exportação de bens e importação de matérias-primas em volumes de proporções inéditas no mundo. Como se posicionar frente ao modelo de desenvolvimento chinês, que tem reconfigurado relações econômicas e políticas em todo o planeta, provocado impactos e alterações em diferentes regiões, e afetado o próprio funcionamento do capitalismo contemporâneo?
A questão foi tema de debate realizado em 25 de junho, quinta-feira, na sede da Fundação Rosa Luxemburgo, em São Paulo, durante evento de lançamento do livro «O Brasil made in China» (baixe o PDF da publicação). Participaram a autora, Camila Moreno, que é formada em Filosofia e Direito e mestre em Sociologia, e Wladimir Pomar, jornalista, ex-preso político, que foi integrante do PCdoB e que participou da fundação do PT. O evento foi realizado em parceria com a Fundação Perseu Abramo.
A publicação é resultado de um levantamento sistemático sobre as relações entre os dois países, e, além de análises, traz informações e dados que ajudam a compreender a dimensão do fator China não só no Brasil, mas em toda a América Latina. O livro apresenta desde temas geopolíticos internacionais, como a aliança Sul-Sul e o Consenso de Beijing, até questões bastante localizadas, como as relações de investimentos chineses no Pré-Sal, o avanço da fronteira do complexo agromineral no Arco Norte, e a expansão da ocupação da Amazônia e seus impactos socioambientais.
Camila Moreno e Wladimir Pomar têm leituras distintas sobre as possibilidades e cuidados que o Brasil deve tomar em relação ao modelo de desenvolvimento chinês. Além das exposições iniciais, o debate contou com três sessões abertas ao público para perguntas e comentários, em um bate-papo que levou duas horas. Assista abaixo à íntegra do encontro ou siga o texto com um resumo das principais questões levantadas.
Marxismo ecológico e ecossocialismo
«Graças à China e só à China o capitalismo conseguiu alcançar o nível, a escala e a materialidade do consumo de massa que a gente tem hoje. O mundo hoje é made in China«, defende Camila. «A China está dentro da gente e nós estamos dentro da China. O grau de interdependência das economias e a dependência material dessa nova circulação que foi colocada, imposta, ela impede que a gente consiga pensar separado as coisas. A partir dos últimos 40 anos, mas com força total nos últimos 20 anos, a China impõe uma reestruturação do capitalismo em todo o globo. Isso faz a gente perguntar hoje: o que é realmente indústria nacional? Como se organizam as cadeias globais de valor? Como se gera valor sobre a propriedade intelectual com uma produção toda transnacionalizada?»
Levantando questões práticas e concretas, a autora sugere que é preciso construir um novo instrumental teórico para analisar e trabalhar com o tema. «Precisamos propor um olhar sobre as reconfigurações do capitalismo contemporâneo a partir da emergência do fator China, que a gente define como um elemento incontornável para pensar os novos mecanismos, e ao mesmo tempo a atualização de velhas dinâmicas. E precisamos nos colocar, frente às novas contradições, também os questionamentos e até onde as teorias com as quais a gente vem tão confortavelmente vivendo, podem se mostrar insuficientes para abarcar a dimensão do processo que vem em direção a nós», afirma. «Uma pergunta que para mim foi muito recorrente e se aprofundou mais quando tive a oportunidade de ir à China foi buscar entender como funciona o metabolismo do capitalismo no século XXI. Essa ideia de metabolismo vem de uma vertente do chamado marxismo ecológico, uma tentativa de interpretar como com a emergência do capitalismo se abre uma ruptura sobre os ciclos da natureza», explica, falando em ecossocialismo e citando acadêmicos como John Bellamy Foster e James O´Connor.
Apontando que «os grandes fluxos de matéria e energia rompem completamente a possibilidade de uma harmonia ecológica», ela destaca o fator China na nova ordem mundial que se desenha. «Esse processo no qual a China cumpre a função de engrenagem central teve um grande impacto na América Latina. Os governos progressistas adotaram o chamado Consenso de Beijing. Após o Consenso de Washington, um dos entendimentos na região era de que a única forma de financiar os grandes programas sociais e fazer profundas transformações com as quais esses governos estavam comprometidos era apostar na exportação de commodities para a China», descreve. «Essa exportação, obviamente, aprofundou um processo que vem sendo chamado de neoextrativismo ou extrativismo, com todas suas consequências como geração de economias de enclave, com aprofundamento massivo da mineração e do agronegócio em todo o continente, e que está na base dos conflitos socioambientais que a gente está vendo. O horizonte de pensar toda essa demanda não pode ser desconectado do processo que ocorre na China de urbanização massiva. Essa reconfiguração do espaço do viver é algo em uma escala descomunal».
Desenvolvimento chinês
Se Camila tem uma visão crítica sobre a reconfiguração que se desenha, Wladimir Pomar, jornalista que acompanha o país desde 1981, não esconde admiração pelo modelo chinês. Ele, que além de escritor, é empresário e atua como consultor de negócios entre os dois países, defende que o Brasil deveria copiar o modelo de desenvolvimento do país asiático. «O Brasil começou uma relação mais intensa com a China a partir de 2004, com o Lula. Eu vinha estudando e dizia para os meus amigos do PT, nós precisamos fazer o que eles fizeram. Primeiro ter projetos. O Brasil infelizmente não tem projeto. Não só projeto de país, mas também projetos executivos, de industrialização, de aumento da produção interna, tanto de duráveis quanto não-duráveis».
Ele afirma que «todo nosso sistema de planejamento foi destruído durante o período neoliberal» e lembra que os chineses trabalham com planejamento de longo prazo, citando que já há planos para comemoração dos cem anos da fundação do Partido Comunista Chinês (em 2021) e da fundação da República Popular da China (em 2049). Wladimir lamenta que o Brasil «não tem ferrovia, não tem navegação fluvial», e que os planos de empresas chinesas para instalação de uma siderúrgica com a Vale e uma associação com o empresário Eike Batista fracassaram. «Além de não termos planejamento para instalar indústrias no Brasil, não temos projeto. Quem faz projeto executivo no Brasil são as empreiteiras que estão enroladas na Operação Lava-Jato».
A partir de uma leitura ortodoxa de Marx, ele defende que adotar o desenvolvimento chinês é um passo necessário para a superação do capitalismo no Brasil. «Nós só vamos ter socialismo e comunismo na medida em que tivermos as forças produtivas altamente desenvolvidas e possamos atender as necessidades de toda população de uma forma tranquila; e que inclusive trabalho obrigatório não seja mais necessário… Tem que desenvolver a indústria, agricultura, comércio, serviços. Se não tiver isso, não vai ter nada. O capitalismo é uma fase histórica nesse caminho. Não dá para dizer: ‘destrói o capitalismo’. Eu quero destruir a exploração capitalista, mas quero me apropriar de tudo que o capitalismo pôde e pode criar», afirma.
Para Wladimir, o Brasil deveria se inspirar no modelo chinês. «Nós podemos fazer com os chineses o que os chineses fizeram com os outros. Mas isso depende de nós. Porque se depender deles, vão querer continuar a importar grãos», diz. Ele argumenta que enquanto na Zona Franca de Manaus, as peças são importadas e os produtos montados para atender o mercado interno, a China adotou um modelo inverso para atrair investidores. «Eles disseram vocês vêm para cá, mas têm que trazer novas tecnologias, fazer uma joint venture com empresas chinesas e só podem vender para o mercado internacional. Isso possibilitou a transferência de tecnologias para suas empresas no mercado doméstico enquanto elas entravam no mercado internacional na garupa das empresas estrangeiras.»
«No Brasil, nós regredimos. Se levar em conta o que era o Brasil antes da crise geral nos anos 1980, e o que é hoje, mesmo com os 12 anos dos governos que se dizem desenvolvimentistas, não crescemos nada. Tentamos desenvolvimento via consumo, mas sem atender esse consumo isso gera inflação. O diabo é que entrou o chinês no meio do caminho. Se não tivessem entrado, estaríamos em uma situação pior. As commodities do agronegócio não teriam permitido ao Brasil recuperar uma parte da sua balança comercial e teríamos afundado ainda mais na crise», defende.
Neodesenvolvimento e violência de Estado
Presentes no debate, o filósofo Paulo Arantes, autor da orelha do livro, e a jornalista Verena Glass, autora do prefácio, fizeram questionamentos sobre o conceito de desenvolvimento, os impactos sociais e ambientais e as fronteiras do modelo desenvolvimentista impulsionado pelas relações com a China. Nos textos de apresentação da publicação, ambos criticam a relação direta entre desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo, e violência de Estado.
Citando o conceito de «confluências autoritárias» do economista Henri Acselrad, do IPUR-RJ, Camila destaca que «a gente vê hoje projetos que eram projetos da Ditadura Militar, projetos de um pensamento militar de ocupação do território, confluindo com estratégias empresariais, contando com a violência legítima do Estado para serem executados, e no qual cada vez mais a gente vê dentro da acadêmia essa reiteração do discurso do desenvolvimento».
«É um processo continuo de subjulgação dos povos, dos modos de vida, dos territórios, de lógicas culturais inteiras que não podem ser outras. Chega com um discurso da inexorável urbanização, do desenvolvimento, como se isso fosse um processo linear», diz a pesquisadora, que, desde 2011, participa do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao Desenvolvimento da Fundação Rosa Luxemburgo, coletivo que reúne pesquisadores e acadêmicos de diferentes regiões que têm visão crítica ao próprio conceito de desenvolvimento. «A gente vem colocando justamente a necessidade de superar isso. Porque o desenvolvimento se instalou como um mecanismo mental que captura um outro território, que não é esse que está sendo destruído, rasgado para se transformar em vias, hidrovias, para os fluxos e refluxos do capital, mas do território mental. O território dos imaginários. Até onde eu consigo deixar algum espaço para utopia, para pensar em um outro mundo que não seja esse? É preciso pensar um mundo onde caibam muitos mundos. E não um mundo onde cada vez mais essa homogeinização, esse achatamento brutal que a gente tem visto».
Caminhos possíveis
Wladimir Pomar defende que, «do ponto de vista geral, temos dois caminhos: ou consideramos a China inimiga, porque está vendendo, comprando minério e soja, deixando de lado o fato que a indústria automobilística é americana, francesa, japonesa, que nossa indústria química foi levada para o exterior por monopólios americanos e alemães; ou achamos que a China pode ser aliada e estabelecemos uma política de relação com a China. É um problema nosso, não da China».
Já Camila Moreno defende que «sem dúvida a China está atendendo os interesse dos seus cidadãos; existe uma adesão muito grande à essa ideia da prosperidade que está sendo construída», mas questiona: «A que custo? Que outros territórios, que outras partes do mundo e formas de vida estão sendo completamente subjulgadas e transformadas? Não de uma forma como nós conhecemos, de imposição de bases militares ou de ofensiva de colonização de imaginários, com Hollywood ou Disney, mas com uma forma muito mais sutil, negociada, uma forma que o próprio Brasil chama, atrai, oferece um menu desses investimentos».
Insistindo que as relações entre Brasil e China hoje são intrinsecas e envolvem relações econômicas e políticas que sobrepassam as divisões territoriais, ela questiona o sentido de falar em interesse nacional. «A China como parceira estratégica do neodesenvolvimentismo, coloca um problema para nós, mas nós quem? Quando a gente fala que não tem planejamento, nós quem? Como a gente fala em interesse nacional? Qual o interesse nacional? Para o interesse nacional do agronegócio, e os grupos e elites que estão com a faca e o queijo na mão, uma série de outros direitos são absolutamente violados e subalternizados em uma forma de reprodução de colonialismo interno muito séria. A gente segue justificando isso como projeto nacional, desenvolvimento», lamenta.
A pesquisadora relaciona o aumento da importação de insumos básicos por parte da China ao processo acelerado de urbanização do país, em um contexto em que é mais difícil distinguir agricultura de indústria e campo de cidade. Destacando que é o o minério de ferro de Carajás (PA) que alimenta a construção de conglomerados urbanos de dimensões inéditas, ela aponta que o governo chinês planeja a construção de usinas nucleares para conseguir manter o abastecimento das megacidades que se desenham. «Qualquer coisa com menos de dez milhões de habitantes é considerada não custo-eficiente. É um mundo todo concentrado, de urbanização massiva do campo. E essas infraestruturas massivas urbanizadas que estão materializando vão se tornar bombas de succção de todo tipo de recursos», ressalta, apontando a conexão viceral entre os dois países. «Se o Brasil parasse de exportar, não sei como a China conseguiria fazer essa transformação».
«Mesmo que um país quisesse se retirar, ele não consegue. Se utopicamente o Brasil fizesse uma revolução e mudasse tudo, dispersasse a população pelo território recompondo as áreas hoje ocupadas por monocultura, como fica a China? A China se tornou dependente e as dependências são recíprocas. Se eu tirar a soja brasileira que chega na China hoje, com certeza teríamos um problema muito sério de segurança alimentar. Assim como se o Brasil retirar seu minério de ferro desse processo metabólico», destaca. «E aí vem a pergunta: e para sair do capitalismo? Que estrada é essa que estamos todos embarcando, que acena ainda com um futuro nuclear. Tem um discurso muito forte, também viabilizado por um debate de clima, de que a energia nuclear é considerada carbono neutro. Em 20, 30 anos, qual o horizonte?»
Também presente no debate, o ex-primeiro secretário da Embaixada Chinesa em Brasília, Zhoiu Shixiu, contestou defendendo que a aproximação entre os dois países deve ser mantida e aprofundada. «Essa relação estratégica é muito importante para o mundo e para a humanidade. Os chineses pensam sempre dentro da influência da filosofia chinesa, que tem uma visão ampla, global. A China é o maior país em desenvolvimento do Oriente e o Brasil do Ocidente. O problema do mundo atual é a velha ordem internacional. Se China e Brasil se unirem em uma grande força podem mudar essa ordem velha e injusta», afirma, argumentando que as relações comerciais vão além das compras massivas de commodities e bens primários por parte de seu país. «Durante vários anos, ouvi muitas queixas de que a China só compra matérias-primas, mas a China também comprou muito avião da Embraer», diz, citando sua experiência na embaixada por três anos. «Para China tanto faz comprar de Embraer ou da Bombardier, do Canadá, mas sei o que pensa o governo chinês. A escolha foi pelo Brasil porque temos ideia de que o Brasil é nosso irmão».
Conforme artigo publicado originalmente no «Caderno de Debates 4» da organização FASE, de acordo com a Câmara de Comércio Exterior (Camex) do Ministério do Desenvolvimento do Brasil, no período de janeiro a junho de 2014 o minério de ferro, a soja em grãos e petróleo responderam por mais de ¾ das exportações brasileiras para os demais países do BRICS. “O minério de ferro, principal produto de exportação, responde por 43,5% da pauta. Soja em grãos e petróleo respondem, respectivamente, por 24,1% e 8,8% das exportações brasileiras para os demais BRICS”, indica documento do órgão.
Zhoiu Shixiu, que além de ter atuado na Embaixada é membro da Associação Chinesa de Estudos Latinoamericanos, professor titular de história da Universidade de Hubei (China) e professor visitante da Unesp (Universidade Estadual Paulista), diz que existe cada vez mais interesse dos brasileiros em saber mais sobre o seu país. «Eu fui o primeiro professor universitário chinês convidado pelo Ministério da Educação (MEC) a dar aula no Brasil. Em 1989, fui chamado para dar aula na Universidade de Brasília (UnB) e depois em várias outras universidades. Em comparação, mais chineses ainda têm interesse no Brasil do que brasileiros na China, mas essa diferença caiu nos últimos dez anos», aponta.
Ele minimiza a relação de interdependência apontada por Camila, e, insistindo em ressaltar os laços de amizade entre os dois países, lembra que «se o Brasil não vende para a China, a China compra minério da Austrália, da Índia, e soja dos Estados Unidos». Também destaca que é a Vale que tem insistido em vender mais minérios para a China, inclusive ampliando sua capacidade de produção e exportação, e lucrando muito com isso.
Tudo para concluir: «Eu aconselho aos amigos brasileiros a manter a amizade chinesa. Nos pensamos como irmãos, somos parceiros estratégicos».